segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Estabelecimento (fora) de moda com odor a museu

A Casa Girão, estabelecimento de moda, em plena Baixa setubalense, continua a resistir, 51 anos após a fundação, ao pronto-a-vestir, sendo hoje, reconhece um dos proprietários, “mais museu do que loja”.

No tempo do pronto-a-vestir, em que modistas e alfaiates caíram em desuso, há um estabelecimento de moda em Setúbal que insiste, há mais de meio século, em vender tecidos a metro, medidos em cima de balcões de madeira, cujos tampos escondem pequenas gavetas que já guardaram artigos de retrosaria.
O odor a passado não se fica por aí. Estende-se pela forma como os manequins são vestidos, com panos soltos, que mãos habilidosas transformam, aparentemente, em peças de vestuário. Também pelas prateleiras recheadas de maços de fazendas, algumas das quais da época da fundação da casa, entre elas a que os comerciantes, antes do 25 de Abril, eram obrigados, por lei, a ter à venda. Não admira, pois, que forasteiros ao passarem em frente à “Girão” - é a ela que nos referimos - parem, com olhar de espanto, e peçam para entrar... e ver de olhos arregalados.
Por tudo isto, um dos fundadores desta raridade - fotógrafo nas horas vagas - não hesita em afirmar que este local de comércio é mais museu do que loja e que somente com subsídios sobreviveria.
Único estabelecimento em Setúbal, cujos manequins são vestidos com a “arte antiga”, que o pronto-a-vestir atirou para fora de moda, a Casa Girão – que em 1 de Outubro de 2003 comemorou as bodas de ouro – vai definhando, é o termo, impotente à força dos ventos da modernidade, onde tudo é comprado já feito, a dispensar tempo perdido em provas e a folhear figurinos.
José de Oliveira Pinho – 79 anos, nascido nas Fontainhas – um dos dois fundadores do estabelecimento, o único vivo, não tem dúvidas, quando afirma, voz embargada, olhos espelhados de lágrimas reprimidas para não rolarem pelo rosto sereno, que a “salvação da casa passava por subsídios”.
Mas, logo, ciente da realidade, adianta uma pergunta, em forma de quem sabe a resposta: “Mas onde é que eles estão?!”
Ao falar em subsídios, Oliveira Pinho não o faz porque está na moda, nem por defender o que quase se tornou instituição nacional. É o dia-a-dia, que os olhos lhe mostram, a porem-lhe as palavras na boca, ao ver, principalmente, em época de férias, os forasteiros pararem “boquiabertos em frente do estabelecimento”, pedirem para entrar e “admirarem as prateleiras recheadas de maços de tecidos, alguns do tempo da fundação da casa”.
De fora, aos menos atentos, a loja pode parecer mais um estabelecimento, igual a tantos outros de venda de artigos de vestuário, mas basta transpor a porta e olhar em redor, com olhos de ver, para perceber que quando o proprietário fala em museu não exagera.
Ele próprio (se) questiona “quantos jovens e crianças sabem que há alguns anos não havia fatos, calças e vestidos prontos a serem comprados e usados quase de imediato, que a roupa era quase toda mandada fazer em alfaiates e modistas”.
O estabelecimento, que antes de ser loja de fazendas, foi talho – visível nos mármores que ainda ostenta - e serviu de comércio a conhecida marca de máquinas de costura, 'cheira', efectivamente, a museu, não apenas pelas prateleiras repletas de tecidos – alguns que já nem se fabricam - vendidos à necessidade de quem compra e medidos com metro de madeira, mas pelos próprios balcões - com gavetinhas, por baixo do tampo, que já guardaram artigos de retrosaria - e pela forma própria de vestir os manequins com tecidos soltos, que mãos engenhosas transformam, aparentemente, em peças de vestuário.
Mas o estabelecimento não é apenas a loja minúscula que está à vista. Por trás, com separação de porta, há um pequeno armazém, também ele com aroma de saudade. Em mais prateleiras, há mais peças, muitas, de tecidos e caixas e caixas de botões, que não foram vendidos quando ainda eram comprados.

Tentativas falhadas

A Casa Girão, a exemplo de outras do género, algumas das quais acabaram, entretanto, por fechar, começou a sentir, de forma mais acentuada, a crise entrar pela porta, quando as grandes superfícies comerciais apareceram em Setúbal, com argumentos maiores, até então desconhecidos na cidade, a fazer concorrência ao pequeno comércio.
Mas, afirma Oliveira Pinho, “já antes, há coisa de 30 anos”, o esboço do retrato actual ganhava os primeiros traços.
Nessa altura, a 'Girão' procurou adaptar-se às circunstâncias e, nunca abdicando da venda de tecidos a metro, optou, em paralelo, pela comercialização de outros artigos, como camisas de homem e fatos de banho de senhora, mas o “espaço exíguo da loja, sem sítio para provas”, pontapeou as esperanças para a rua da desistência.
Mesmo assim, até porque as “outras lojas que vendiam a metro acabaram ou transformaram-se”, a 'Girão' não atirou a toalha ao chão, continuando de portas abertas, apesar de haver “dias sem um único cliente”.

Bailes de finalistas e casamentos

Por isso mesmo, porque os clientes escasseiam - ao ponto de em Julho o proprietário não ter levado “um tostão para casa” - é preciso aproveitar todos os dias, “procurar ganhar para as despesas que não encurtam”, a 'Girão', este ano, contrariamente ao que sempre aconteceu, não encerrou para férias de 15 de Agosto a 15 de Setembro.
A estratégia, que, salienta Oliveira Pinho, contou com a “compreensão do empregado, na casa há quase 40 anos”, não resultou.
Perante este cenário, construído pelo acumular de desilusões, reflectidas na fita da caixa registadora que não vê forma de ficar gasta, a Casa Girão pode deixar de o ser, num epílogo de sonho que chegou a ser verdade.
Até lá, a esperança vai sendo renovada, diariamente, por patrão e empregado, com o caminhar constante, de passos curtos, entre o balcão e a porta, na ânsia de ver aparecer um cliente, antes das festas de finalistas!
Nessas alturas, a “faixa etária dos clientes, maioritariamente senhoras, desce” e, à loja, “vem gente jovem que quer aparecer no baile vestida de forma original”.
No resto do ano, pelos mesmos motivos, “sucede, de maneira espaçada, o mesmo com os convidados dos casamentos”.
A pensar, essencialmente, nestes casos especiais, a 'Girão' dispõe, sempre, de figurinos actualizados, tendo já comprado os da época Outono/Inverno. É que, “muitas vezes”, explica Oliveira Pinho, as “pessoas quando entram no estabelecimento não sabem bem o que querem e vendo modelos actuais têm a vida facilitada”.
Naturalmente, os tecidos também foram adquiridos. O risco, afinal, sempre foi uma constante do negócio e se “mesmo acompanhando a moda é o que é”, o que seria se tal não acontecesse.

E depois do adeus?

Oliveira Pinho, por mais voltas que dê à cabeça, não encontra forma de a loja não vir a encerrar as portas. O trespasse e a venda são soluções que, atendendo ao local e ao espaço –além da loja, os dois andares de cima também são da 'Girão' – pequeno para o ramo a que se dedica, mas, provavelmente, a servir para outra actividade, não devem ser difíceis de encontrar.
Ao falar do assunto, porém, Oliveira Pinho deixa, outra vez, a emoção transparecer, na voz presa na garganta e nos olhos húmidos, pelo fim do projecto sonhado há mais de meio século, é verdade, mas, também, pela incerteza quanto ao futuro do empregado.
O empregado, afiança, “tem de receber o mesmo” do que ele e do que a sócia – viúva do homem que, com ele, fez da 'Girão' a “casa de referência que sempre foi” – “por uma questão de justiça e de moral”.
Quanto ao recheio, não tem dúvidas, “não vale nada”, que, “agora, nem os ciganos compram os restos de tecidos para os negociar, já vendem pronto-a-vestir”.
Depois, pergunta e responde, em voz sumida, como se falasse consigo próprio, “quem é que compra, por exemplo, tecido para mandar fazer um fato, quando por menos dinheiro, e sem perdas de tempo com provas, pode ter um logo feito? Nem eu”.
A propósito, lembra que, há tempos, lhe ofereceram um corte de fazenda para um e que “só no alfaiate ficaram 25 contos, dinheiro para poder, então, comprar quase dois, prontos a vestir”.
Por tudo isto, não o “surpreende que as fábricas de têxteis estejam a encerrar e que as lojas tenham amontoados de tecidos, alguns, os mais antigos, vendidos apenas, de longe em longe, a retalho, aos ranchos folclóricos”.
Com a certeza de que os tempos que já foram melhores não voltam, Oliveira Pinho, enquanto espera pelos bailes de finalistas, espreita a porta, na esperança de ver entrar uma senhora que queira ir a um casamento com a certeza de que o vestido que leva é único, de que um rancho folclórico precise de um retalho ou que forasteiros lhe peçam para visitar um estabelecimento de moda... fora de moda, quase museu.

O nascer do sonho

A Casa Girão, inaugurada em 1 de Outubro de 1953, começou a ser sonhada por José de Oliveira Pinho e por Cipriano Martins, já falecido, quando ambos trabalhavam numa loja, no Largo da Ribeira Velha.
Oliveira Pinho, que entrou para o estabelecimento – conhecido como a 'loja das bolas' - do padrinho, aos 11 anos, por “especial favor, sem ordenado, para aprender”, deixou a casa, que, também, “vivia fase menos boa”, passados 17, a ganhar 600 escudos mensais.
Mesmo tendo em conta que na altura a importância valia incomparavelmente mais do que hoje, não dava para juntar grande coisa. Por isso, ele e o futuro sócio tiveram de pedir, emprestados, 50 contos cada um.
Pelo trespasse do estabelecimento de venda de máquinas de costura, na Antão Girão, onde instalaram a loja, que ganhou o nome à rua, pagaram 30 contos e, volvidos cinco anos, embora, de início, os “apuros fossem pequenos”, compraram, por 90, os três andares do prédio.
Ainda estavam para vir, sem se vislumbrarem, os tempos de se olhar para a Casa Girão como olhos – e respeito - de quem observa um museu.

Artigos obrigatórios


Dos tecidos em prateleira, na 'Girão' – alguns já nem se fabricam, do tempo da fundação da casa – há os que, antes do 25 de Abril, os estabelecimentos comerciais eram obrigados, por lei, a ter.
Eram os chamados 'artigos tabelados' - chitas, riscados, pano cru –, referenciados com um rótulo vermelho e verde e loja que o não tivesse, lembra Oliveira Pinho, era multada, sendo que a “fiscalização era feita por agentes da PSP, prepotentes, sem qualquer preparação”.
A Casa Girão, também nisso, é um museu.
Tal patrão, tal empregado
A exemplo de Oliveira Pinho, o empregado – António Duarte Alves, de 49 anos – começou a trabalhar aos 11, mantendo-se, desde então, na 'Girão'.
Tal como o patrão, continua a atender os clientes de gravata, como era hábito no tempo em que a loja começou a “ser casa de referência”.

Um fotógrafo entre tecidos

Uma das grandes paixões de Oliveira Pinho, além dos tecidos, é a fotografia, com participação em cerca de uma vintena de salões, publicado um livro -'Rio Sado/ Ouro Azul' – e tendo outro na forja.
'Rio Sado- Ouro Azul', editado em 1996, é composto por 93 fotografias, a cores, todas legendadas.
O próximo 'álbum', com fotos obtidas nos anos 60 e 70, anteriores às inseridas no primeiro livro, todas a preto e branco, também ligadas ao Sado e às suas gentes, “mostram a escravidão em que viviam os que, no tempo da ditadura, dependiam do rio”.
Sem querer levantar muito a 'ponta do véu', o artista revela que o livro “deve sair, se tudo correr normalmente, este ano, editado pela Universidade Popular Bento de Jesus Caraça”.

In "www.mun-setubal.pt"

7 comentários:

Anónimo disse...

Olá.
Em primeiro lugar gostaria de dizer que fiquei muito contente ao encontrar, na blogosfera, um espaço para esta fantástica profissão.
Mas, a razão porque vos deixo uma mensagem, é outra.
Sou neta de um antigo Alfaiate, o Mestre Alfaiate Campos. Eu e a minha família temos, em casa, muitas fazendas, botões, linhas, tecidos de camisa, gravatas e muitas outras coisas de muito boa qualidade. Como nenhum de nós seguiu os passos do meu avô, achamos que é um desperdício deixar estas coisas esquecidas em casa sem que tenham um destino digno.

Portanto, a minha pergunta é a seguinte: Estariam interessados, ou conhecem alguém que possa estar interessado é dar a estes materiais o destino que lhes compete?
Muito obrigada.

Filipa Campos

Alfaias disse...

Cara Filipa:

Obrigado pela sua mensagem.
Realmente é pena ver o espólio de uma vida profissional,desaparecer sem aproveitamento para futuras gerações.
A melhor das soluções seria, nestas situações,a existência de um museu ou memorial (daqui a pouco fará todo o sentido). É uma ideia a desenvolver.
Até lá, porque não contacta alfaiates na sua zona?
Diga-nos o resultado e se tiver oportunidade envie-nos informações sobre o seu avó.

Cumprimentos
Alfaias

Anónimo disse...

O meu avô chamava-se José Figueiredo de Almeida Campos e esteve ligado a duas casas em Lisboa de que foi sócio: a Fati, nas Avenidas Novas e a Campos, Alfaiate Mercador, na Pinheiro Chagas. Fez parte da delegação portuguesa que esteve presente no Congresso Mundial de Alfaiates em Madrid (1970) e Londres. Esteve sempre ligado à Casa de Repouso dos
Alfaiates.

Filipa Campos

Alfaias disse...

Agradecemos à Filipa Campos as informações acerca do seu Avô, Sr.José Figueiredo Campos, Mestre Alfaiate em Lisboa.
Ficamos a aguardar qualquer informação, acerca deste ou outro alfaiate, que queiram partilhar.

Obrigado
Alfaias

Ana Isabel disse...

Sou filha de um grande alfaiate residente aqui em Fortaleza mas que nunca fora devidamente reconhecido.Ao longo de seus 79 anos trabalhou em vários estabelecimentos,dentre eles um grande amigo Girão.Ao meu pai lhe fora tirado o dom de escutar o ruído das máquinas(ele é deficiente auditivo)mas lhe fora recompensado com uma grande habilidade nos dedos e mãos pois alinhava e corta um paletó como ninguém!!! Tenho muito orgulho dele.
Ana Isabel

Alfaias disse...

Infelizmente a Ana Isabel não nos diz o nome do seu Pai, Mestre Alfaiate no Brasil.
Ficamos a aguardar por mais pormenores que a Ana Isabel queira partilhar.

Alfaias

Lurdes Pelarigo disse...

Bom dia,
estive a ver o seu blog e deparei-me com um comentário da Filipa Campos, que perguntava se haveria alguém interessado em tecidos que pertenciam ao seu avô. Se tiver chitas, pano cru, enfim, "os tecidos dos pobres" dos anos 30-40, eu estaria muito interessada. Fica aqui o meu mail, caso a Filipa leia este comentário: lurdespelarigo@gmail.com. Obrigada.