"Daqui a dez anos, a cidade contará pelos dedos" os últimos profissionais. São poucos, e ainda menos os bons, mas ainda se podem encontrar em Lisboa. Dedicados a uma clientela cada vez mais seleccionada, os alfaiates que restam na capital debatem-se com a falta de profissionais capazes, a quem gostariam de passar o testemunho, mas não acreditam nos estilistas. Ao pronto-a-vestir resistirão os melhores. lr ao alfaiate não é hoje tão vulgar como era há 30 anos. A indústria têxtil cresceu e pôs no mercado um sem-número de artigos e, por outro lado, os alfaiates estão a desaparecer a olhos vistos. E a cidade nem dá por isso. Reformam-se, morrem, desistem e deixam uma herança que ninguém quer, um trabalho que ninguém continua. Existem hoje na Grande Lisboa, segundo números da Associação Portuguesa dos Industriais de Vestuário (APIV) — aproximados, porque não há dados recentes e nem todos os elementos deste ofício estão inscritos —, entre três e quatro centenas de alfaiates. Na lista telefónica encontram-se referências à actividade, mas muitas não são mais que um nome e um número na lista, havendo "alfaiatarias" que não contam nos seus quadros com um único alfaiate.Para se perceber como se chegou a esta situação e preciso recuar no tempo. Segundo o Ministério do Emprego, na década de 50, um por cento da população jovem activa estava entregue aos afazeres da alfaiataria, o que significava que cerca de 5700 portugueses, entre os 10 e os 19 anos estava, na época, a aprender a medir, cortar, passar, coser, como viam fazer o pai, o tio ou qualquer outro membro ou amigo da família. O sr. Baptista foi um dos que, por volta dos 12 anos, começou a aprender o ofício. Como a grande maioria dos alfaiates de Lisboa, só mais tarde veio para a capital, onde estavam os melhores da profissão. Os primeiros passos, deu-os em Viana do Castelo. Considera que os alfaiates que iniciavam a aprendizagem na província ficavam mais bem preparados, pois dominavam todas as fases da criação de um fato—cortar, passar, pontear, coser, tudo passava pelas suas mãos. Em Lisboa, foi para um primeiro andar da Rua da Prata. Era uma das quase duas dezenas de pessoas que lá trabalhavam. "Nesse tempo havia trabalho para todos. Quando ouvia a campainha da porta, o patrão dizia logo 'oxalá não seja mais um freguês para escolher um modelo'. Hoje, dizemos exactamente o contrário..." O patrão morreu e o sr. Baptista continuou o trabalho, até hoje, mas por apenas mais dois anos. Trabalha com uma costureira e não tem ninguém a quem passar testemunho. Desde há muito que não sabe o que é ter um aprendiz.Um outro alfaiate, também estabelecido num velho edifício da Rua da Prata, prepara-se para o adeus aos clientes, no fim do ano. Completaria 53 anos de profissão no início de 1992, mas não vai lá chegar. O problema é também não ter quem continue o trabalho. "Os jovens de hoje não estão para isto. Hoje só querem tirar um cursinho e arranjar um emprego, mas não um trabalho", diz. Mas reconhece que é preciso "muita arte, muito saber, muita paciência, para estar todo o dia num terceiro andar a trabalhar a sério".
Hábitos mudaram em 74
Os alfaiates apontam geralmente o ano de 1974 como o início do declínio da profissão, o que explicam pela "mudança nos hábitos da população, que passou a vestir roupa mais prática, acompanhada pela diminuição do pessoal das alfaiatarias". E. Gomes dá o exemplo da casa onde trabalha, que, tendo já contado com mais de 60 pessoas, emprega hoje 12. Na opinião do vice-presidente da APIV, Armindo Bártolo, ele próprio alfaiate, "assiste-se a um processo de selecção, e só os melhores vão aguentar o embate com o pronto-a-vestir". Habituados a um modo de vida e de trabalho muito virado para si próprios, os alfaiates tendem a valorizar a aprendizagem tradicional, extensiva, apologista do "faz como eu faço", em detrimento de escolas e cursos, que ainda olham com muitas suspeitas. O primeiro passo para uma nova vaga de alfaiates, capazes de produzir mais e melhor, foi dado pelo Centro de Formação Profissional dos Industriais de Vestuário e Confecção, que chegou a promover, não há muito tempo, um curso. No entanto, um pormenor deitou por terra todos os planos : a inexistência de candidatos... Em países como a Áustria ou a Holanda, porém, tem sido possível atrair os jovens para a alfaiataria, com cursos cuja qualidade é unanimemente reconhecida em Portugal. "Por este andar", afirma o sr. Baptista, "daqui a dez anos, Lisboa contará pelos dedos os seus alfaiates." Para amostra, vão ficar alguns, ou porque são muito bons (e muito caros) ou porque estão bem organizados, nomeadamente em estabelecimentos de pronto-a-vestir e que não deixarão escapar o elemento de distinção que é ter uma secção de alfaiataria. Daqui resultará que esta actividade se torne cada vez mais elitista, com um mercado concentrado em três grandes grupos: os que, pelas suas características físicas, não encontram roupa no pronto-a-vestir; aqueles a quem a posição social exija um grande cuidado na apresentação, e os que simplesmente não se "revêem" na roupa industrial, mas apenas naquela feita à sua medida, personalizada. Este é, de resto, um mundo todo ele personalizado. São-no os artigos vendidos, como as relações entre artesão e cliente. O alfaiate tem, normalmente, amigos para quem trabalha, o que é diferente de trabalhar para "simples fregueses". Uma amizade cimentada em muitos anos, muitos fatos, muitas confidências. O cliente da casa, normalmente, volta sempre, pelo que é difícil voltar-lhe as costas e fechar o negócio... Os novos estilistas portugueses não são considerados como fazendo parte do mesmo mundo. "Só sabem desenhar", considera E. Gomes. "Não têm qualquer relação com a alfaiataria. Dedicam-se à moda feminina, ao contrário, por exemplo, dos estilistas espanhóis, que também se dedicam à roupa masculina", afirma um vendedor de uma das antigas alfaiatarias da Baixa, hoje ligada ao pronto-a-vestir. •
Filipe Costa