O sonho de se tornar um grande alfaiate levou-o a trocar o Porto por Madrid, mas foi em Londres que aprimorou a sua arte e passou a integrar o restrito clube dos que ostentam o selo de qualidade de Savile Row. Agora está em Nova Iorque, mas já ganhou o mundo.
Muitos e-mails depois – e ainda com os fusos horários trocados –, esta entrevista realizou-se durante uma breve passagem de Ayres Gonçalo por Portugal, em trânsito entre os Estados Unidos, onde vive desde finais de 2010, e Hong Kong. Ayres, que faz questão de colocar o sobrenome à frente do nome próprio, pertence à terceira geração de alfaiates de uma família do Porto com tradição e reputação na matéria. O interesse “pelos trapos”, mesmo que tenha sonhado a certa altura com ser jogador de futebol ou piloto de Fórmula 1, chegou-lhe cedo. Aos 16 anos, depois das aulas, já ajudava o avô com as provas e as vendas: “Aprendi com o meu avô toda a parte teórica de alfaiataria. Ainda hoje, e apesar dos seus 82 anos, lhe ligo quando tenho dúvidas”. Foi também com essa idade, 16 anos, que recebeu as primeiras encomendas dos seus amigos.
Chegado à idade adulta, e mais do que certo da sua opção de vida, sentiu necessidade de ir além na sua arte e perseguiu o sonho em Madrid. Foi, todavia, em Savile Row, a rua londrina onde se alinham as mais prestigiadas casas de alta alfaiataria do mundo, que ganhou técnica e conhecimentos para voar mais alto. Ser finalista do concurso Golden Shears, em 2008, ou ter feito um fato para o príncipe Carlos deu-lhe visibilidade, mas é o diploma da Savile Row Bespoke Association que o coloca entre a fina flor dos alfaiates, que, doravante, lhe vai servir de passaporte no mundo.
UP – Quando é que sentiu a necessidade de deixar o Porto e ganhar o mundo?
AG – Por volta dos 21 anos comecei a sentir que necessitava de aprender mais. Só conhecia a técnica do meu avô e queria muito conhecer outros alfaiates e outros estilos. Resolvi ir estudar alfaiataria em Madrid, na Escuela Superior de Sastreria da Sociedad de Sastres de España. Ali tirei o meu curso de corte e, ao mesmo tempo, trabalhava no mais prestigiado alfaiate espanhol (Pedro Muñoz), na Calle Serrano. Em Madrid, ouvi falar de Savile Row, e a partir desse momento não descansei enquanto não vi com os meus próprios olhos a realidade da rua mais prestigiante do mundo quando se fala de fatos por medida. Uma vez na capital britânica, a Gieves and Hawkes deu-me a possibilidade de trabalhar três meses à experiência. Aos 24 anos estava a trabalhar com a melhor equipa de alfaiates do mundo e demorei a acordar para a realidade. Nos primeiros tempos, nem queria acreditar que os fatos feitos por mim eram vendidos ao cliente por um mínimo de £3600 (cerca de €4170)!
UP – Savile Row ainda é “a” escola?
AG – Além de ter tido a oportunidade de trabalhar na Gieves and Hawkes, tive a sorte de ter o melhor de todos os mestres — foi o mesmo do Alexander McQueen. Aprendi uma técnica mais exigente e detalhada, uma técnica fabulosa que vou aplicar para o resto da vida! Definitivamente Savile Row é o sonho para qualquer jovem que pretenda ser alfaiate.
UP – O que é isso de ser alfaiate nos dias de hoje, em que tudo parece girar à volta dos designers e das marcas?
AG – É algo de extraordinário, mas é uma arte em vias de extinção. E é pena. Talvez porque o mediatismo de um designer de moda é muito maior do que o do alfaiate… Já o meu mestre dizia “toda a gente quer ser famosa”, mas o que os jovens designers não sabem é que é muito mais cool ser alfaiate (risos)!
UP – O fato que fez para o príncipe Carlos trouxe-lhe notoriedade, ou não?
AG – Sou apreciador dos fatos assertoados. O príncipe Charles também. Recordo que quando o recebemos no ateliê da Gieves and Hawkes, eu tremi descontroladamente durante uma hora! Sempre sonhei em fazer-lhe um fato, mas, sinceramente, nunca pensei que tal pudesse acontecer. Quando um dia de manhã cheguei ao ateliê e em cima da minha mesa estava um fato para ser executado com o nome do príncipe Charles, saí do atelier para cair na real e só regressei no dia seguinte. Tinha, na altura, acabado de fazer 28 anos.
UP – É maior a pressão quando se faz um fato para alguém tão conhecido?
AG – Não tem a ver com a fama do cliente. Dá-me maior gozo trabalhar para alguém que dê o devido valor a um fato feito inteiramente à mão; a um fato feito com amor. O príncipe Charles, independentemente de ser príncipe, é uma pessoa que dá valor à arte de alfaiataria. O Lapo Elkaan ou o Luca Rubinacci são outros dois exemplos – não foi por acaso que o Tom Ford considerou Lapo Elkaan “The most stylish man in the world”.
UP – É uma questão de estilo ou de moda?
AG – Não sigo as tendências de moda, para ser sincero. Nem sei o que está na moda. A moda de Londres é uma, a de São Paulo, de Milão, de Tóquio ou de Nova Iorque são outras. Sigo estilo, observo quem tem estilo. Alguém disse um dia: “Há gente que veste Prada e parece que vai de Zara e há gente que veste Zara e parece que vai de Prada”. Aplico estilo no meu trabalho.
UP – Quem é hoje o cliente que vai ao alfaiate?
AG – São homens e mulheres (também há mulheres que vão ao alfaiate fazer blazers) das classes alta e média-alta. Pessoas que foram educadas pelos pais a ir ao alfaiate, a dar valor ao fato feito pelo alfaiate. Em Nova Iorque, na loja onde trabalho, temos muitos clientes jovens, o que revela uma mudança curiosa de hábitos num país que não possui uma tradição de alfaiataria.
UP – E porquê trocar a tradição e prestígio de Savile Row por Nova Iorque?
AG – Fiquei quatro anos em Savile Row, mas em finais de 2010, aos 29 anos, surgiu a oportunidade de mudar para Nova Iorque e não pensei duas vezes. Vim descobrir um mundo novo, uma cidade nova e não estou arrependido. Tenho saudades de Savile Row e de todos os colegas e amigos que deixei para trás, mas o sonho comanda a vida e em Londres já não estava a sonhar… Além disso, estava a precisar de ver um pouco de sol!
por João Miguel Simões
UP Magazine da TAP.
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