Aqui há uns tempos, instado à regularização da minha situação tributária, desloquei-me a uma repartição de Finanças. Aí chegado, e enquanto aguardava a minha vez, entretive-me a fazer algo que raramente faço: a “olhar para os outros”, melhor dizendo, a observar a indumentária de cada um. E, meus amigos, que Carnaval! Desde camisas demasiado largas nos ombros a outras demasiado curtas nas mangas; desde calças três tamanhos acima a outras dois tamanhos abaixo; desde bainhas acima do tornozelo a outras a arrastar pelo chão; desde calças a apertarem a meio do cú a outras a fazerem fronteira com o peito; desde sapatos autênticas barcaças a sandálias a deixarem os dedos a bater no chão… Enfim, entre uns mais sujos e outros mais limpos, entre uns mais arranjados e outros com total falta de gosto, parecia eu que estava num circo do século XIX em pleno número de exibição de freaks e de mutantes, eu que por acaso nesse dia também estava de chinelos e com umas calças esgaçadas! …
Mas o que verdadeiramente me chamou a atenção foi que, independentemente do asseio, das marcas, do gosto e do corpo de cada um, praticamente ninguém estava a usar roupa ajustada ao seu corpo, às suas “medidas”, parecendo todos contudo muito satisfeitos dentro das suas peças, algumas delas desconfio que bem caras. Ninguém estava a usar roupa de corte, muito menos de bom corte. Naquele microcosmo, só havia Pronto-a-vestir! E a percepção desta realidade, na qual nunca reparara - porque também eu pertenço á geração do pronto-a-vestir -, não só de repente se me tornou clara e luminosa, como ainda mais se acentuou quando me recordei de algumas fotografias do século XIX e da primeira metade do século XX, todas elas bem reveladoras de como nessa época as pessoas faziam questão de se apresentar em público com aprumo, com garbo, com roupa “á medida”, mandada fazer escrupulosamente e a preceito. E diga-se que não eram só os ricos a aparecer com esta elevação, porque também os mais humildes, nas suas obrigações sociais, apresentavam-se o mais impecavelmente vestidos possível, dando descanso, por um dia que fosse, aos seus tamancos, se não mesmo aos seus andrajos.
Entendamo-nos. Aquilo para que eu chamo a atenção não é para a forma como cada um veste. Quanto a isso, nada tenho a dizer. Sou, por respeito à diferença, tolerante para com todas as modas, tendências, “tribos”. O que é surpreendente é como actualmente a maioria das pessoas veste mal, mesmo quando ostenta grandes marcas, parecendo, aliás, em muitos casos, que a roupa que usam foi roubada, ou, pelo menos, definitivamente não dimensionada/feita para o seu corpo. A razão já sabem qual é. Nos dias de hoje, praticamente todos nós vestimos do chamado pronto-a-vestir. São muito poucas as pessoas que ainda mandam fazer a roupa no alfaiate ou na costureira. Não só porque é mais dispendioso e também mais demorado, mas sobretudo porque para as gerações mais novas, nascidas nos últimos trinta, quarenta anos, a questão nem se coloca, não só pelas tendências actuais da moda e pelo estilo casual/desportivo hoje reinante - que tornam inconcebível o recurso a tal prática -, mas talvez, e até mais, porque com o tempo o hábito de ir “tirar as medidas” foi ficando “careta”, anquilosado e definitivamente arredado dos tempos modernos.
O facto é que até aos anos 50 o Pronto-a-vestir era algo pouco difundido e a maior parte das pessoas, que usava um estilo clássico, não tinha outra alternativa que não fosse recorrer primeiro às casas de tecidos e, de seguida, solicitar os serviços de um alfaiate, de uma costureira ou de uma modista. O Pronto-a-vestir e o seu imediatismo não existiam.
Ora a grande diferença entre estas duas modalidades de confecção é que na alfaiataria o cliente tira as medidas primeiro, e só mais tarde, após várias provas, é que vai buscar o fato, a camisa ou o vestido, desta forma adquirindo uma peça ajustada à sua silhueta, feita para si e a contar com as suas imperfeições; não para milhares de seres, imaginados ideal e proporcionalmente perfeitos. A massificação do Pronto-a-vestir é, aliás, traduzida em números, embora muitas vezes já nem isso se verifique, substituídos que foram entretanto por letras: S, M, L, XL. Dou-vos o meu exemplo. De blazer “visto” o 50! Por causa dos ombros. Porque, pelos braços, mais curtos, vestiria e o 48. De modo que quando compro um blazer já sei que tenho que comprar o 50, embora as mãos fiquem quase escondidas nas mangas do casaco. Contudo, se comprar antes o 48, já sei que pareço enfiado numa jaqueta de primeira comunhão. (Aqui descomplexadamente vos revelo o meu drama). De qualquer modo, sempre que questionado a tal respeito, afirmo peremptoriamente que o meu número é o 50!!. Mas é mesmo? Pelo que ainda agora disse o meu número deveria ser um 50 de ombros e um 48 de manga, mas isso não há em lado nenhum… só no alfaiate!
Desta difusão do Pronto-a-vestir várias consequências negativas advieram. Primeiro, o quase desaparecimento da alfaiataria. Depois, o menor aprumo mesmo da parte de quem ainda veste de forma clássica, porque também esses já não vestem roupa por medida; vão antes comprá-la à loja. Mas, sobretudo, a ditadura dramática dos números que, em última instancia, conduz muitas adolescentes a espirais de desequilíbrio, depressão, ansiedade e angústia, totalmente amedrontadas pela ideia de já não se conseguirem meter dentro do “seu” número, e receando a ilação obvia: - “que estão umas baleias!” Recordo a este propósito um anúncio televisivo recente em que uma jovem bastante ansiosa afirma-se preparada, parece-me que após uma dieta, a passar a “prova do botão”, porque, claro, aquele botão seria a final a prova da sua elegância. E pensar na frequência com que até há uns anos atrás as pessoas mandavam apertar ou alargar a sua roupa, num processo natural de ajustamento da roupa ao corpo e às suas metamorfoses…
Como digo muitas vezes, a História não se repete, mas não deixa de laborar continuamente sobre reminiscências do passado. É muito curioso, talvez até inesperado, mas a alfaiataria está hoje de novo na moda, muito por iniciativa, pasme-se, das grandes Empresas de Pronto-a-vestir. Hão-de reparar, por exemplo, no final dos telejornais: entre as marcas que surgem a apoiar a produção encontramos por exemplo esta - Massimo Duti - Personal tailoring. Em muitas lojas da Dielmar, já se veêm modelos com este dístico - Alfaiataria por Medida. Nas lojas Mistic shirt, marca portuguesa com mais de 50 anos, lê-se nas montras esta informação: Fazemos camisas por medida. Insignes personalidades do nosso meio confessam que já só mandam fazer os seus fatos no Rosa & Teixeira – alfaiates. Não configura isto uma lenta mas segura recuperação de hábitos e tradições antigas?
Há cinco anos comprei um blazer que, apesar de ser o 50, me ficava um pouco largo. Não liguei. Resignei-me a usá-lo. Era o 50! Há meses, falando com uma pessoa de mais idade, sugeriu-me que o levasse a um alfaiate para o apertar. Pois bem, amigos, o blazer é outro, e eu próprio fiquei outro!
Paulo Coutinho
paulodavidcoutinho@gmail.com
In Jornal Beira Vouga
Sem comentários:
Enviar um comentário