sábado, 28 de maio de 2011

Os alfaiates do Porto ainda cortam na casaca



Coser, entretelar ou enchumaçar ainda são termos comuns na Invicta. Se acha que a alfaiataria já deu o que tinha a dar, continue a ler este artigo. Alexandre Ferreira, Victor Gonçalves e Augusto Saldanha são o exemplo vivo de que a arte ainda vive. A Praça esteve à conversa com estes 3 alfaiates portuenses e descobriu que há mesmo quem não prescinda dos seus serviços.

 Alexandre tem 77 anos.
Alexandre Alfaiate
A Alexandre Alfaiate já faz história na Praça Coronel Pacheco há 80 anos, mas só desde 1962 é que pertence a Alexandre Ferreira. O rapazito que aprendeu a dar os primeiros pontos numa alfaiataria da vila de Mesão Frio aventurou-se com 13 anos na Invicta e acabou por herdar, anos mais tarde e por algumas patacas, o negócio do patrão.
A vida “mudou sempre para melhor” e, hoje, Alexandre, com 77 anos, tem clientes de classe média-alta que já são amigos e que, como não sentem a crise, continuam a bater-lhe à porta.
Com fatos acima dos 900 euros, não é qualquer um que tem um smoking com a etiqueta do Alexandre. “Estou agora a fazer um fato que vai chegar aos 3.500 euros, em pura caxemira. É para uma pessoa muito conceituada cá no Porto”. E o preço nem é assim esticado porque o fato dura muito, mas “o toque é maravilhoso”, explica Alexandre.
“Isto não é como a confecção em que é sempre a mesma coisa e as máquinas é que fazem tudo… é muito difícil”, realça o alfaiate.
E a verdade é que para além do toque ou da forma como “a obra assenta no corpo”, a verdade é que os alfaiates respeitam os tecidos. Não havendo colagem da tela interior, como nas confecções, o fato mantém as condições de ventilação.

 Augusto Saldanha é o alfaiate da Rua Trindade Coelho. 
Augusto Saldanha
A oficina de Augusto Saldanha esconde-se num primeiro andar aconchegado da Rua Trindade Coelho. Com 60 anos, Saldanha, como é conhecido, é alfaiate há 45.
Aprendeu com o irmão o que tinha para aprender, mas foi no Porto que se tornou artista e se apaixonou pela arte. Dos clientes de classe média-baixa passou para os clientes da média-alta e agora sente-se realizado. “Tenho clientes que vestem o meu fato como uma peça de arte”, conta.
Veste os Pessanha, os Sotto-Mayor, os Portela e outras figuras da cidade, mas o que o deixa verdadeiramente orgulhoso é Paulo Portas, que apelida de “seu manequim”.Saldanha não fala em preços, mas diz que só não sente a crise porque mudou a clientela. “O meu cliente antigo não tem poder de compra. Hoje, um caixa de um banco não pode fazer aqui um fato, não tem possibilidades económicas”.
Para Saldanha, os clientes são amigos que fazem do seu gabinete de provas “um confessionário”, afirma.


A. Gonçalves
Alfaiate há 42 anos, estabeleceu-se na antiga oficina do pai, na Rua Galeria de Paris, e foi ganhando os seus próprios clientes, também oriundos da classe média-alta. Mas Victor Gonçalves não veste amigos. “A relação com os clientes é uma relação profissional. Muitas vezes, roça a amizade, da parte deles para mim”, afirma. E a consideração que eles têm com este alfaiate, é das coisas que mais o orgulha.
Na A. Gonçalves, já  lhe pediram de tudo, desde “um vermelho muito vivo” a casacos com os bolsos para trás, com capuz de frade ou com um chapéu de pescador. Os clientes, às vezes, “obrigam a inventar um bocadinho”, o que não seria possível numa confecção artesanal.
Mas qualquer fato, mais estranho ou mais comum, leva a sua marca. “Todos nós podemos fazer a mesma coisa, que nunca será igual. A marca fundamental que fica menos perceptível é o estilo de cada um”.
E Victor é o único dos 3 alfaiates que diz sentir a crise. “Comparando o que fizemos em outras alturas com o momento actual, sim. Os clientes não desapareceram, mas se antes fazia 6 calças por estação, agora faz 3″.

E afinal, que futuro para o alfaiate?
Saldanha acredita que “o alfaiate nunca vai acabar. Acabaram muitos e os bons ficaram” mas Victor já não é tão optimista.
Só há 2 coisas que estes 3 alfaiates têm em comum: têm todos muito trabalho e nenhum deles tem a quem passar o testemunho. Um facto incompreensível, porque a arte parece ser cada vez mais procurada por jovens e, como diz o senhor Saldanha, actualmente, “é o filho que traz o pai”.
Em altura de crise económica, o investimento seria favorável. Fica o conselho, para não deixar morrer a arte – e a oportunidade.

 Outras alfaiatarias
  • Alfaiataria Santos
Rua de José Falcão, 80, 4050 – Porto. Tel.: 222 052 410. ‎
  • Aires Carneiro Silva
Rua Anselmo Braanc 48,4º-D, 4000 – Porto. Tel.: 225 360 001. ‎
  • Rosa&Teixeira SA
Avenida Boavista 3523 – loja 1, 4100-139 Porto. Tel.: 220 440 845.
  • Alfaiataria Queiroga
Rua Bonjardim 1133, 1º-E, 4000-133 Porto. Tel.: 225 505 441.
  • Alfaiataria Saldanha Lda
Rua 31 Janeiro 63,1º, 4000-543 Porto. Tel.: 222 008 823.

In Porto 24
Por Liliana Pinho
Fotos: Liliana Pinho

sexta-feira, 20 de maio de 2011

UM GUARDA-ROUPA FEITO À MÃO GUARDADO NO BAÚ DA MEMÓRIA

São idos os tempos que em Portugal, nem sempre pelas melhores razões, mas sempre com o melhor dos resultados que com apenas necessidade e engenho se manufacturava em contexto doméstico todo o vestuário do homem e da mulher portugueses. A reutilização e a transformação quase mágica de peças de vestuário em outras vestes, acessórios de roupa e elementos de decoração do lar, dá-nos uma larga experiência na arte de produção de roupa e afins, com as mais variadas técnicas de construção e materiais utilizados.
A manufactura de peças de vestuário demarca-se do contexto doméstico quanto mais exigente for o corte ou
manuseamento dos materiais. Sobretudo a roupa masculina carece em muitas situações de um mestre capaz
de talhar à medida as muitas indumentárias que enchem o guarda-roupa do homem português de novecentos. O fato e as sobrevestes de um modo geral obrigam a um grande apuramento do corte de acordo com o corpo a vestir (estima-se que um fato leve 35000 pontos manuais) (1), assim como algum trajes regionais obrigam a um grande esforço no manuseamento dos materiais, como parece ser o caso da Capa d‘Honras de Miranda do Douro, uma veste de agasalho que, por levar tanto pano para a sua confecção, defende-se a ideia que será mais fácil aos alfaiates o seu manuseamento, por serem homens, usando técnicas, métodos e utensílios próprios.
Para melhor responder a estas exigências e apurar o desenho das muitas indumentárias que preenchem o guarda-roupa masculino do séc. XX, é necessário facilitar os meios de transmissão de conhecimentos da arte, através de estruturas de ensino que possam dar a conhecer os métodos e técnicas específicas da alfaiataria usadas no país e no estrangeiro.

Alfaiataria em Portugal
Escolas de corte de vestuário masculino do século vinte

Se à alfaiataria diz respeito a manufactura de roupa masculina, isto não significa que seja toda a roupa masculina. Longe das grandes cidades, um alfaiate bastava para dar conta das encomendas de fatos dos homens de várias freguesias. Os trabalhadores rurais usavam raramente fato, alguns, os menos pobres, usavam o fato em situações muito formais como a ida às sortes ou as cerimónias sacramentais. As roupas do dia-a-dia destes trabalhadores eram manufacturadas desde as camisas e toda a roupa interior até às vestes de fora, calças, sobretudo, pelas mulheres da casa. Mais, as meias coloridas, feitas à mão com quatro ou cinco agulhas e outros atavios ou acessórios indispensáveis para levar o dia como o saquinho das moedas, do relógio ou do farnel, e o lenço de mão eram laborados pelas mulheres da casa.
Na maioria dos casos, porque o ofício de alfaiate garantia um emprego “debaixo de telha”, as famílias colocavam o filho mais novo em oficinas de alfaiates, as crianças eram assim iniciadas na arte ainda antes dos dez anos de idade. Ao serviço dos mestres desempenhavam a função de chegamiço (2) e permaneciam na oficina quase uma década até terem a responsabilidade de cortar e exercerem a função de contra-mestres.
Muitos alfaiates do interior do país faziam serviço ao domicílio, deslocavam-se a casa dos senhores para tirar as medidas e fazer provas, passando lá o dia de trabalho em troca de dinheiro e comida. O ensino de manufactura de roupa masculina no séc. XX era ministrado inicialmente pelos sindicatos dos profissionais de alfaiates de Lisboa e Porto. Mas foi na década de trinta que se implementaram, nestas duas cidades, os organismos mais relevantes de ensino da arte de alfaiataria do país: A Academia de Corte Sistema Maguidal e a Academia Nacional de Corte, em Lisboa, e o Instituto Superior de Corte, no Porto. A Academia de Corte Sistema Maguidal, fundada em 1934 por Manuel Guilherme de Almeida, sobressai-se pelo método inovador de corte que implementou no ensino e para o qual editou um manual de corte designado Método de Corte Sistema Maguidal, que resultou de um método desenvolvido pelo mestre Maia (Augusto da Silva Paulet Maia), professor da arte na antiga Associação Fraternal da Classe dos Operários de Lisboa até 1917. O método consistia em obter as principais fracções proporcionais na intersecção e triangulação do quadrado formado pela medida de peito, o que tornava os traçados mais simples que os estrangeiros. Manuel Guilherme de Almeida sustentou o estudo com a elaboração de uma base geométrica a que chamou “Sistema Maguidal”, usando as primeiras letras dos seus nomes, a partir da qual se encontrou seis fracções da medida de peito e a adaptou a todas as peças de vestuário que integram o manual.
 A Academia Maguidal editou durante 35 anos a Revista Vestir, uma revista de técnica e Moda para alfaiates, tendo sido cedida a patente em 1987 ao CIVEC – Centro de Formação Profissional da Indústria de Vestuário e Confecção.
A Academia Nacional de Corte, em Lisboa, foi fundada por António Mendes Baptista, também fundador e proprietário de um outro periódico da área, a Revista Técnica de alfaiataria, com artigos especializados na arte da alfaiataria, com métodos e traçados de corte de roupa masculina.
O Instituto Superior de Corte foi fundado em 1939, por João Lázaro, no Porto, que aí ensinou o ofício de cortar roupa por medida com base numa forma de cálculo das proporções assente no princípio geométrico, que facilitava a obtenção da medida da cava. Desde sempre interessado no apuramento de um aparelho de medição que ajude na obtenção do desenho da cava em função da medida do indivíduo inventou alguns aparelhos de medição, como a couraça antropométrica, que por ser um instrumento caro o obrigou a pensar num outro, o cavímetro. Ainda a este propósito faz referência no seu tratado à graduantropometria, um sistema de medição desta vez da autoria de Henrique A. Garcia alfaiate de Tomar.
Os cursos ministrados nas escolas de corte tinham a duração variável, dependendo do grau de especialização ou dos cursos, havendo mesmo cursos por correspondência, para os alfaiates do interior do país. Mas todos abordavam disciplinas como, a matemática, a antropometria, a geometria e a planimetria, a miologia e a osteologia a anatomia e a fisiologia.
A alfaiataria, que é durante os três primeiros quartéis do séc. XX um ofício de grande reconhecimento, decai até quase à extinção de grande parte das peças de vestuário que aqui se mencionam, restando a confecção de fatos, essencialmente, sobretudos, trajo professoral e trajo magistral.
As escolas de corte de roupa masculina fecham por falta de procura de clientes nas alfaiatarias, mas também por falta de alunos que queiram aprender o ofício.
Se o ofício de alfaiate é, nos dias de hoje, uma prática quase extinta, como se sabe, é maior o risco de extinção nas regiões do interior do país e no Alentejo. São aí muitos os ex-alfaiates que recordam com saudade a época em que eram procurados para talharem à feição. E são alguns os que, para matar saudades do antigo ofício, se dedicam à construção de miniaturas de peças de vestuário, iguais às que antes confeccionavam à escala humana.
De forma a e perpetuar a memória de uma prática (quase) extinta, bem como das suas técnicas e instrumentos, a autora e coordenadora do projecto Diana Regal, pela Colecção B, Associação Cultural, com a parceria financeira da ANIVEC/APIV e com a parceria científica do Museu Nacional do Traje, encontra-se em trabalho de concretização de A tesoura de Emmanuel Kant – Indumentárias da alfaiataria portuguesa.
A tesoura de Emmanuel Kant – Indumentárias da alfaiataria portuguesa propõe-se como projecto de investigação de campo centrado na alfaiataria, como método artesanal de produção de roupa masculina por medida, do século vinte, dos grandes centros urbanos do país, Lisboa e Porto, e das regiões rurais, como o Alentejo, o Ribatejo e a Serra da Estrela.
O projecto traduz-se na edição de um livro sobre a alfaiataria em Portugal, homenageando a arte e os seus mestres com identificação das peças de vestuário de alfaiate, usadas nos três primeiros quartéis do século XX, e numa exposição de 35 indumentárias a 1/3 da escala humana, que melhor representam o guarda-roupa do homem português desta época, com realização prevista para Outubro do presente ano. A exposição conta com a consultoria técnica do mestre alfaiate Armindo Bártolo e com o alfaiate João Virgílio, para a realização das indumentárias em miniatura.Conta ainda com participações escritas no livro de vários investigadores da área e com a colaboração de inúmeros alfaiates.
O projecto teve já uma mostra de traje masculino do Alentejo, que reuniu 18 indumentárias em miniatura de trajo masculino das regiões do Alentejo e Ribatejo, realizadas pelo alfaiate alentejano João Virgílio.
A exposição esteve patente ao público de 6 a 30 de Maio, na sede da Fundação Alentejo-Terra Mãe,
em Évora.Um projecto Colecção B, em parceria com a ANIVEC/APIV e o Museu Nacional do Traje.

(1) - Armindo Bártolo, mestre alfaiate de Lisboa.
(2) - Termo usado para designar o aprendiz que se inicia na arte com a função de
chegar os utensílios ao mestre, sob a ordem: chega-me isso! 




Revista Vestir nº 62
CIVEC