domingo, 27 de janeiro de 2008

Homenagem


Alfaiate à moda antiga resiste no Porto

Vitorino Sampaio Lei­te, alfaiate de profis­são, enternece-nos quando fala da seu pequeno atelier, como se fosse uma casa de bonecas onde perma­necesse desde a adolescência, por gosto de confeccionar as vestes dos senhores do seu imaginário. Também disfarça um já pouco comum amor à arte, preferindo perder a ga­nhar se o cliente questiona o seu trabalho, que por vezes habilmente molda a um cor­po já sem medidas ou sem modelos fabricados nas redes comerciais.

Entregue ao mister des­de 1958, e há 33 anos instalado na Avenida Bra­sil, à Foz do Douro, o artífice é simplesmente des­conhecido de parte das ge­rações mais recentes, que ignoram haver ainda fatos de homem que se fazem por medida, que se provam duas e três vezes para as­sentar bem as costuras ou para combater a teimosia de uma ruga persistente.

«Gosto da profissão mas poucas vezes me agra­da o que faço», exterioriza, deixando a impressão da exigência com que constrói as suas peças, desde as indumentárias normais até à chamada «obra de cinta» (smoking ou casaca), acolitado por dois ou três colaboradores que resistiram a um trabalho praticamente em extinção. Apesar de tudo, obra não lhe falta, embora a procura venha apenas do pequeno estrato que fez frente ao pronto-a-vestir ou que não se imagina com outro traje senão um clássico «blaser» ou um paletó confeccionado em puro algodão do Egipto. O custo não é exagerado se avaliar­mos o preço que hoje atinge qualquer insignificância «hand made», ou os fatos italianos «prêt-à-porter» que proliferam nas lojas da especialidade. Já não haverá muitas alfaiatarias do género no Porto a quem o cliente possa confiar um bom corte de fato. As roupas de marca quase que lançaram este pequeno grupo de artífices num beco sem saída, apesar de o rigor e qualidade que teimam oferecer permita manter ainda um lote de perduráveis apreciadores.

«Os clientes é que fazem a casa»

«Os clientes é que fazem a casa, embora as mãos também tenham o seu va­lor», constata Vitorino Lei­te, segurando no braço direito um casaco alinha­vado sem mangas. O traba­lho, como é fácil perceber, tem muito que se lhe diga, sendo sujeito a vários tes­tes: na primeira prova, fa­zenda e forros são molda­dos ao corpo do cliente, sendo posteriormente testa­dos de novo, mas já com as frentes elaboradas. Nor­malmente recorre-se a uma terceira prova, com manga e gola alinhavada, antes de se concluir a peça, que finalmente é rematada e engomada. Antes a fazenda é sujeita ao chamado «ressoo», sendo só depois cortada e preparada para as provas. Uma tarefa delicada, mas que é acompanhada de um saudável convívio com clientes, que o artista aproveita para pôr a conversa em dia e contar as últimas novidades.

O alfaiate tem três cola­boradores - profissionais que o acompanham há dé­cadas, sempre fiéis, «uma equipa maravilhosa», como o próprio a define, reconhe­cendo que dificilmente en­contraria gente nova para trabalhar à sua maneira. «São profissionais excelen­tes, e merecem tudo porque me acompanham há muitos anos».

Vitorino Leite não pare­ce ser daqueles profissionais que leva os problemas para casa, que dorme com eles em cima do travesseiro, mas preocupa-o atrasar a obra e o cliente apressado que lhe deixa à porta a mensagem que todos bem conhecemos: «Preciso deste fato para sexta-feira, sem falta».

Da sua clientela diz ser «gente de princípios que gosta de vestir bem» (o artista aprecia enaltecer as pessoas que o procuram, que considera «a razão de ser da sua alfaiataria»), possuindo também um rol de «amigos da casa» que com ele se aconselharam e depois acabaram por gostar do seu trabalho. O alfaiate orgulha-se de ter em cartei­ra «gente de grande exigên­cia», constando do seu fi­cheiro desde comandantes de navio até conceituados ídolos da canção, como o saudoso Tony de Matos.

Especialista em corte clássico, Vitorino Leite mol­da-se ao gosto de qualquer pessoa, mostrando-se capaz de executar desde o modelo mais ligeiro até aos fatos de linha italiana exclusivos das afamadas catedrais da mo­da. «Executo qualquer tra­balho, clássico ou moderno, só que o cliente tem que me dizer bem o que quer», explica.

Alfaiataria ocupa a casa onde morreu António Nobre

A alfaiataria funciona como qualquer casa vulgar do ramo. Aliás, o cliente pode comprar ali os forros, tecido e até botões, tudo das melhores origens. Em maté­ria de fazendas o artista prefere não arriscar, pos­suindo padrões para todos os gostos, desde as peças nacionais até aos consagra­dos fios italianos e ingleses.

No Inverno, como é natural, o trabalho aperta e o tempo escasseia à medi­da que o Natal se aproxima. A alfaiataria confecciona entre dois a três fatos de homem por semana, poden­do até satisfazer mais clien­tes que lhe encomendam peças soltas. «Os alfaiates têm fama de demorar muito graceja, embora nos garan­ta que nunca deixou ficar um cliente desprevenido. «Fui sempre pontualíssimo, sempre muito direitinho. Nesse aspecto não tenho histórias para contar».

De resto, Vitorino Leite parece nada ter a recear. E é vê-lo, pouco depois do meio-dia, conversador, a pisar sossegadamente o pas­seio da Avenida Brasil, em direcção a casa. A alfaiata­ria ocupa o rés-do-chão do edifício onde morreu Antó­nio Nobre, uma antiga casa de praia de que Vitorino se orgulha e que parece não querer abandonar por nada deste mundo, apesar das propostas que já lhe chega­ram às mãos. No entanto, já com mais de sessenta anos de idade, o alfaiate não deixará continuadores no ofício.

Mas o artista, para já, não pensa nisso, preferindo recordar os tempos em que se decidiu pela profissão, ensaiando os primeiros gol­pes de agulha e os precoces alinhavos, e lembrando o rigor que sempre dedicou ao seu mister: «No começo nunca me agradou o meu trabalho, queria aprender sem deslizes; quando corria mal, sem dar a entender a alguém, afastava-me e cho­rava».

Manuel Morato (texto)

Angela Velhote (foto)


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Alfaiates de Lisboa com pouco pano a medir

"Daqui a dez anos, a cidade contará pelos dedos" os últimos profissionais. São poucos, e ainda menos os bons, mas ainda se po­dem encontrar em Lisboa. Dedicados a uma clientela cada vez mais seleccionada, os alfaiates que restam na capital debatem-se com a falta de profissionais capa­zes, a quem gostariam de passar o testemunho, mas não acreditam nos estilistas. Ao pronto-a-vestir resisti­rão os melhores. lr ao alfaiate não é hoje tão vulgar como era há 30 anos. A indústria têxtil cresceu e pôs no mercado um sem-número de artigos e, por outro lado, os alfaiates estão a desaparecer a olhos vistos. E a cidade nem dá por isso. Reformam-se, morrem, desistem e deixam uma herança que ninguém quer, um trabalho que ninguém continua. Existem hoje na Grande Lisboa, segundo números da Associação Portuguesa dos In­dustriais de Vestuário (APIV) — aproximados, porque não há dados recentes e nem todos os elementos deste ofício estão ins­critos —, entre três e quatro centenas de alfaiates. Na lista telefónica encontram-se refe­rências à actividade, mas muitas não são mais que um nome e um número na lista, havendo "alfaiatarias" que não contam nos seus quadros com um único alfaiate.Para se perceber como se chegou a esta situação e preciso recuar no tempo. Segundo o Mi­nistério do Emprego, na década de 50, um por cento da popula­ção jovem activa estava entregue aos afazeres da alfaiataria, o que significava que cerca de 5700 portugueses, entre os 10 e os 19 anos estava, na época, a aprender a medir, cortar, pas­sar, coser, como viam fazer o pai, o tio ou qualquer outro membro ou amigo da família. O sr. Baptista foi um dos que, por volta dos 12 anos, co­meçou a aprender o ofício. Co­mo a grande maioria dos alfaia­tes de Lisboa, só mais tarde veio para a capital, onde estavam os melhores da profissão. Os primeiros passos, deu-os em Viana do Castelo. Considera que os al­faiates que iniciavam a aprendi­zagem na província ficavam mais bem preparados, pois do­minavam todas as fases da cria­ção de um fato—cortar, passar, pontear, coser, tudo passava pe­las suas mãos. Em Lisboa, foi para um pri­meiro andar da Rua da Prata. Era uma das quase duas deze­nas de pessoas que lá trabalha­vam. "Nesse tempo havia traba­lho para todos. Quando ouvia a campainha da porta, o patrão dizia logo 'oxalá não seja mais um freguês para escolher um modelo'. Hoje, dizemos exacta­mente o contrário..." O patrão morreu e o sr. Baptista conti­nuou o trabalho, até hoje, mas por apenas mais dois anos. Tra­balha com uma costureira e não tem ninguém a quem passar testemunho. Desde há muito que não sabe o que é ter um aprendiz.Um outro alfaiate, também estabelecido num velho edifício da Rua da Prata, prepara-se pa­ra o adeus aos clientes, no fim do ano. Completaria 53 anos de profissão no início de 1992, mas não vai lá chegar. O problema é também não ter quem continue o trabalho. "Os jovens de hoje não estão para isto. Hoje só que­rem tirar um cursinho e arran­jar um emprego, mas não um trabalho", diz. Mas reconhece que é preciso "muita arte, muito saber, muita paciência, para es­tar todo o dia num terceiro an­dar a trabalhar a sério".
Hábitos mudaram em 74
Os alfaiates apontam geral­mente o ano de 1974 como o iní­cio do declínio da profissão, o que explicam pela "mudança nos hábitos da população, que passou a vestir roupa mais prá­tica, acompanhada pela dimi­nuição do pessoal das alfaiata­rias". E. Gomes dá o exemplo da casa onde trabalha, que, tendo já contado com mais de 60 pes­soas, emprega hoje 12. Na opinião do vice-presidente da APIV, Armindo Bártolo, ele próprio alfaiate, "assiste-se a um processo de selecção, e só os melhores vão aguentar o embate com o pronto-a-vestir". Habituados a um modo de vida e de trabalho muito virado para si próprios, os alfaiates tendem a valorizar a aprendizagem tra­dicional, extensiva, apologista do "faz como eu faço", em detrimento de escolas e cursos, que ainda olham com muitas sus­peitas. O primeiro passo para uma nova vaga de alfaiates, capazes de produzir mais e melhor, foi dado pelo Centro de Formação Profissional dos Industriais de Vestuário e Confecção, que chegou a promover, não há muito tempo, um curso. No en­tanto, um pormenor deitou por terra todos os planos : a inexis­tência de candidatos... Em paí­ses como a Áustria ou a Holanda, porém, tem sido possível atrair os jovens para a alfaiata­ria, com cursos cuja qualidade é unanimemente reconhecida em Portugal. "Por este andar", afirma o sr. Baptista, "daqui a dez anos, Lisboa contará pelos dedos os seus alfaiates." Para amostra, vão ficar al­guns, ou porque são muito bons (e muito caros) ou porque estão bem organizados, nomeada­mente em estabelecimentos de pronto-a-vestir e que não deixa­rão escapar o elemento de dis­tinção que é ter uma secção de alfaiataria. Daqui resultará que esta actividade se torne cada vez mais elitista, com um mer­cado concentrado em três gran­des grupos: os que, pelas suas características físicas, não en­contram roupa no pronto-a-ves­tir; aqueles a quem a posição so­cial exija um grande cuidado na apresentação, e os que simples­mente não se "revêem" na rou­pa industrial, mas apenas na­quela feita à sua medida, perso­nalizada. Este é, de resto, um mundo todo ele personalizado. São-no os artigos vendidos, como as re­lações entre artesão e cliente. O alfaiate tem, normalmente, amigos para quem trabalha, o que é diferente de trabalhar pa­ra "simples fregueses". Uma amizade cimentada em muitos anos, muitos fatos, muitas con­fidências. O cliente da casa, nor­malmente, volta sempre, pelo que é difícil voltar-lhe as costas e fechar o negócio... Os novos estilistas portu­gueses não são considerados co­mo fazendo parte do mesmo mundo. "Só sabem desenhar", considera E. Gomes. "Não têm qualquer relação com a alfaiata­ria. Dedicam-se à moda feminina, ao contrário, por exemplo, dos estilistas espanhóis, que também se dedicam à roupa masculina", afirma um vende­dor de uma das antigas alfaiata­rias da Baixa, hoje ligada ao pronto-a-vestir. •

Filipe Costa