quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Loureiro e Nogueira - O alfaiate «quase por imposição»



O ofício de alfaiate surgiu «quase por imposição». Sem colégios 
para prosseguir os estudos em Benavila, Alentejo, João Ribeiro escolheu a prática do corte e costura para ganhar a vida. Em Lisboa fez-se mestre e, há 20 anos, estabeleceu-se por conta própria na Alfaiataria Loureiro e Nogueira. Com astúcia e rigor manteve os clientes que trouxe do local onde anteriormente trabalhava e soube renovar a clientela. Aos 62 anos lamenta que a profissão em Portugal não seja tão reconhecida como outrora.


Na rua há o burburinho de quem aguarda vez para entrar num dos elevadores mais emblemáticos de Lisboa. O elevador de Santa Justa foi desenhado pelo engenheiro português Raoul Mesnier du Ponsard. O ascensor que liga a Baixa pombalina ao Bairro Alto funciona desde 1902 e atrai todos os dias milhares de turistas


No número 79, 1º andar, da rua com o mesmo nome do elevador, indiferente ao burburinho da cidade, João Ribeiro exerce profissão antiga: é alfaiate. De origem alentejana, conta que «na terra, Benavila, concelho de Avis, não havia colégios, nada para estudar. Tinha pois de escolher uma profissão. Foi quase por imposição porque não havia muito por onde escolher». Foi assim que ainda em Avis, João Ribeiro começou a dar os primeiros passos no ofício de «cortar e coser. Hoje gosto muito do que faço», sublinha.

Os alfaiates eram tidos em grande consideração. A profissão era exigente e, por isso, reconhecida pela sociedade. Com instrumentos simples, tesoura, régua, giz, exigia-se, contudo, ao alfaiate que tivesse bons conhecimentos de geometria e aritmética.

João Ribeiro gosta de adicionar um pouco de «sorte» a estes factores. Na Alfaiataria Loureiro e Nogueira, que gere desde 1992, comenta, espreitando por cima dos óculos, suportados na ponta do nariz: «Quando vim para Lisboa, estive em algumas casas. Aquela onde estive mais tempo, 29 anos, foi na Alfaiataria David, na Rua de São Nicolau. O senhor David era judeu e homem com muita visão para o negócio. Foi aí que aprendi praticamente tudo. Tive sorte».

«O senhor David tinha visão de negócio. Antes mesmo do pronto-a-vestir existir em todo o lado, ele já tinha algumas peças à venda, como camisas, pólos, gravatas. Estava preparado para este avanço. Era um visionário. E isto foi o que sustentou a alfaiataria. As encomendas de roupa por medida diminuíram. Eu estive na Alfaiataria David até ela praticamente fechar portas. Saí e pouco tempo depois aquilo encerrou, já o senhor David havia falecido há alguns anos», explica João Ribeiro.

A Alfaiataria Loureiro e Nogueira foi fundada em 1930, as quotas
 do espaço foram cedidas a vários alfaiates e, em 1992, chegaram 
às mãos do alentejano João Ribeiro. O espaço pequeno mantém-se igual. Uma pequena sala, com um cabide para pendurar chapéus e sobretudos, acolhe o cliente após subir as escadas de madeira votadas, quase, ao abandono. O prédio há muito que vê os habitantes partirem para  outras casas, mais modernas, e afastadas do centro histórico da cidade.

O chão e os móveis são de madeira. Contrastam com as paredes brancas. Uma habitação pequena alberga a mesa para marcar roupa, e manequins vestidos com casacos, calças, sobretudos. Peças de roupa feitas com preceito e por medida que aguardam os donos.

«Tenho clientes que fazem 10, 12 fatos por ano. Há pessoas que têm mania da roupa. Fazem porque gostam. Os tecidos vêm sobretudo de Itália e Inglaterra, a indústria cá desapareceu e o que há não tem muita qualidade, mau acabamento», diz o alfaiate.
Alguns tecidos estão expostos numa prateleira logo que entramos no atelier Loureiro e Nogueira. No centro da sala, está a mesa para desenhar. Com o giz, João Ribeiro faz uns rabiscos num casaco que, para um leigo no ofício, parece estar concluído».
O alfaiate apressa-se a explicar: «O cliente veio há pouco provar o casaco. Estava já concluído. Mas ele quer que fique um pouco mais cintado. É isso que estou a fazer. Faço o desenho do que deve ser retirado e dou às costureiras para elas retirarem o excesso».

Costureiras hoje são duas, que trabalham numa pequena sala. Dividem o espaço com máquinas de costura e ferros. «Já tenho ferros eléctrico, mas uso pouco. Quando é para entregar a roupa, já o trabalho final uso sempre o ferro a carvão. É pesado e leva o tecido para onde nós queremos», comenta João, piscando o olho, em jeito de quem acaba de confessar um pequeno truque do ofício.
Entre os clientes gosta de referir, Mário Soares, o político. «Vestiu-o durante toda a sua presidência», comenta. Mas na carteira de fregueses, há outro, mais anónimo, que João Ribeiro gosta sempre de citar, ainda que sem nomes.

«O senhor Teixeira, o alfaiate que aqui estava queria reformar-se e propôs-me que eu comprasse as quotas. Mas eu não tinha dinheiro e a banca não emprestava como hoje. Então pedi emprestado a um cliente meu na casa David. Sai então desta alfaiataria e, claro, trouxe a clientela atrás. Há 20 anos quando me estabeleci aqui, eu tinha a clientela toda na mão. As pessoas vão atrás do profissional. E foi assim que me estabeleci por conta própria».
Num ofício em vias de extinção, João Ribeiro conta como renovou a carteira de clientes. «Os clientes eram todos velhotes e percebi que tinha de renovar a clientela. Foi então que fiz facilidade de pagamento. A única vez que isso aconteceu na minha casa. Aos jovens que estavam a iniciar a carreira, permiti-lhes que pagassem em duas ou três vezes. Hoje estão todos bem empregados e pagam a pronto. Mas assim consegui rejuvenescer os meus clientes», afirma.

Aos 62 anos, João Ribeiro confessa ter disposição para trabalhar mais alguns anos e conclui que «gostava de ter quem lhe seguisse os passos. Poucos são os que procuram a actividade e os que querem seguir o ofício vão para fora onde o ofício é mais reconhecido».

Sara Pelicano

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O Alfaiate


Esta é uma pessoa incrível ...
Ele é o mais antigo alfaiate de Amarante, Portugal.
Com Oitenta e oito anos o Sr. Gonçalves, avô de Ana, ama seu trabalho e acorda todos os dias às 6:00 para ir ao seu local de trabalho ...
Foi muito bom falar com ele ...

José Augusto o alfaiate dos diplomatas


Em Lisboa, em plena baixa pombalina, José Augusto assegura o funcionamento da Alfaiataria Ernesto Martins, fundada em 1940. Entre os clientes, muitos ilustres que procuram o corte firme e certo do alfaiate e a distinção do espaço. A alfaiataria é ampla, com sala de recepção onde se escolhem tecidos, sala de provas e oficina de trabalho.

Um pedaço de tecido, sem forma. Em cima do tecido está um molde recortado em papel. Num primeiro olhar percebemos que reproduz o formato de uma perna. José Augusto segura o giz na mão. Com segurança e rapidez faz uns traços no tecido, contornando o pedaço de papel. No tecido, o desenho copia a forma que vimos, primeiro, no papel. «Isto é o molde de um cliente. Quando se faz o desenho dá-se sempre uma folga para os ajustes», conta José Augusto, alfaiate desde os 12 anos.

A Alfaiataria Ernesto Martins foi fundada em 1940 pelo alfaiate com o mesmo nome. José Augusto, natural de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, chegou aqui depois de passar pela tropa. Seguiram-se anos de aprendizagem, de infinitas horas debruçado sobre os tecidos, os moldes, os cortes, os remates finais.

Em 1993 José Augusto adquiriu o espaço. Hoje, a alfaiataria lisboeta, na Rua da Conceição, porta número 7, mantém-se com a elegância de sempre.

Os móveis de madeira expõem alguns fatos já terminados. Móveis que arrumam também muitas amostras de tecidos. Tudo meticulosamente disposto e pronto para receber os ilustres clientes.

«Nomes não posso adiantar, mas a nossa clientela é essencialmente constituída por embaixadores, corpo diplomático, políticos», diz José Augusto com vincado orgulho. O anfitrião na arte do corte e costura acrescenta ainda: «Há um ministro da actualidade que a primeira vez que aqui entrou foi pela mão do pai para fazer o fato da primeira comunhão. Ainda hoje cá vem. O pai vinha e avô também». Uma sucessão de gerações em busca da mão firme de José Augusto para o corte e costura. A alfaiataria localizada num primeiro andar tem uma sala de recepção. Aqui, uma mesa de madeira maciça suporta os mostruários dos tecidos. «São todos importados. Portugal não tem fazendas de excelente qualidade. Usamos sedas, algodão, lã», diz José Augusto.

Por seu turno, a sala de provas, ampla, abre-se para uma janela que permite espreitar a rua da baixa pombalina. Jorra a luz natural. «Temos estes dois espelhos grandes, colocados frente a frente e giratórios. Permitem que o cliente veja frente e costas sem ter de torcer o pescoço».
Avançamos através de um corredor estreito. Está «forrado» de caixas. Dentro destas, parte da matéria-prima do alfaiate: linhas e botões. Chegamos à sala de trabalho. Um espaço grande, com mesa de corte, tábuas de passar a ferro e máquinas de costura. Neste espaço, José Augusto conta com a ajuda de três costureiras, uma delas sua esposa. «Algumas estão aqui há 40 anos», diz José Augusto. Noutros tempos, contudo, trabalhavam aqui 30 pessoas.
«O que mais gosto de fazer é a casaca, aquela com as asas de grilo, cortada à frente. É usada normalmente pelos maestros. Eu costumo fazer para o corpo diplomático, embaixadores. Outra peça que também me apraz é o fraque. Está cheio de pormenores», diz José Augusto, enquanto estica um tecido escuro. Coloca o molde de papel por cima e com o giz marca no tecido o desenho do molde.Noutros casos, para desenhar o modelo do fato recorre-se ao esquadro e régua. Nos utensílios do alfaiate junta-se a tesoura, o ferro, as linhas de alinhavar e coser, botões. «Continuo a passar as roupas com ferro a carvão. É mais pesado e faz melhor os vincos», explica o anfitrião.

Um saber fazer fundado numa tradição milenar, como atesta a história. O termo «alfaiate» tem origem na expressão árabe Al-Kaiat. O verbo khata significa coser. Já do latim, herdámos a expressão sarcir, que diz respeito à técnica de remendar um tecido roto com outro pedaço de tecido semelhante. Sarcir advém do verbo sarcire, que significa coser. Entre nós, uma das referências mais antigas do ofício de alfaiate remonta ao século XII. Na época, o alfaiate gozava de grande prestígio no reino de Portugal, especialmente entre os judeus. Um ofício ancestral que José Augusto já ensinou a alguns jovens. Todos saíram da alfaiataria. «A grande maioria não seguiu a profissão. Vive-se deste ofício, mas ganhar dinheiro não posso dizer que se ganhe. Eu já estou reformado, continuo a trabalhar por gosto, mas também por necessidade», explica.


Sara Pelicano

Café Portugal


terça-feira, 8 de novembro de 2011

Lisboa - A «janela indiscreta» do alfaiate Brito

     Faltavam 11 dias para a «Revolução dos Cravos» de 1974. Facto que o alentejano Francisco Brito não poderia antecipar. Na altura comprava a alfaiataria onde já trabalhava, em pleno Rossio. Sem o saber adquiria uma janela com vista para um dos palcos da Revolução. Indiferente, Francisco continuou a marcar os tecidos com giz, a cortar e a coser. Passados 37 anos, o alfaiate mantém viva a sua arte no mesmo local.


 É do corte e costura que Francisco Sabino Brito faz arte e profissão desde os tempos da meninice, quando os horizontes eram alentejanos, os de Almodôvar. Aos 17 anos, Francisco parte para Lisboa onde o seu percurso de alfaiate havia de se cruzar com uma janela cobiçada.

«Comecei na actividade como aprendiz, aos 14 anos, ainda em Almodôvar. Naquela altura aprendiam-se ofícios como o de alfaiate, sapateiro ou carpinteiro», conta Francisco Sabino Brito na sua alfaiataria, a mesma onde se iniciou ao vir para Lisboa. «Cheguei à capital aos 17 anos. Depois, aos 20 fui para a tropa. Regressei aqui e a 14 de Abril de 1974 comprei a casa ao meu patrão. Isto 11 dias antes da Revolução», diz o alfaiate.

O número 93 da Praça D. Pedro IV (Rossio) tem vista privilegiada para a rua através da pequena janela da sala de corte e costura. A morada da Alfaiataria Brito ganha, assim, uma vista privilegiada para uma das mais cosmopolitas praças de Lisboa. Onde hoje há carros em buliço, turistas descontraídos e esplanadas de pendor estival, outrora anteciparam-se algumas movimentações para o dia que marcaria no calendário da História a «Revolução dos Cravos».

Francisco Brito, 61 anos carregados de genica, baixa o tom de voz quando refere a data da compra e as movimentações em torno da dita janela. Passados 37 anos sobre o fim do regime salazarista, Francisco sussurra quando remete as palavras para esse passado.
Na época a sorte como alfaiate esteve do seu lado, refere Francisco Brito. «No quarto onde vivia quando cheguei a Lisboa, morava também um alfaiate. Ele tinha a par do seu emprego, uma carteira de clientes. À noite no quarto ia costurando os fatos, ajudado por algumas costureiras. E ensinou-me muita coisa. Eu aprendia de noite e de dia. Isto fez com que chegasse a oficial muito rapidamente», explica Francisco Brito.

De aprendiz de alfaiataria, Francisco completou a sua passagem a oficial. O topo da carreira viria mais tarde como contra-mestre, «aquele que apenas corta». Um percurso rápido feito entre paredes caiadas de branco, onde a luz da rua entra pela única janela, aquela que dá vista para o Rossio.
A conversa faz-se na sala de espera, pequena. Aqui o cliente aguarda a sua vez, ocupando o tempo, provavelmente, com um dos inúmeros catálogos com amostras de tecido.
Da famosa janela, chega o burburinho da rua. Há quem apregoe a sorte contida numa fracção da lotaria. Há quem ponha a conversa em dia numa esplanada. Francisco Brito confessa que não gostava da fama da sua janela noutros tempos. «Nunca deixava vir aqui ninguém, sobretudo se era dia de muitas movimentações», conta, retomando o tom sussurrado.
«Houve, contudo, um dia que apareceu aqui uma moça sueca, com uma perna engessada. Pediu para fazer uma filmagem. Hesitei, mas ao ver o estado da moça e o esforço que terá feito para subir as escadas deixei-a entrar. Passou todo o dia na janela a filmar», pormenoriza o alfaiate.
Enquanto a «moça sueca» filmava a Praça do Rossio na década de 1970, Francisco Brito e os nove funcionários que naquela altura empregava, estendiam o tecido sobre a mesa. Gestos que se repetem hoje. Giz branco e mão certeira para desenhar o formato da roupa com o auxílio de uma régua e esquadro. A tesoura, grande e afiada, retira o excedente de tecido. As costureiras, com máquinas de coser e à mão, unem o restante e a roupa ganha forma.

No terceiro andar da Alfaiataria Brito, não há corredores. Da sala de espera a porta abre-se, dando imediatamente acesso à sala de provas. Um espaço rectangular com o espelho e um manequim para colocar os casacos.
«É aqui que um alfaiate mostra o que vale», adianta Francisco no espaço pequeno, abrigo das vaidades dos clientes. «Um bom alfaiate é aquele que faz bons ajustes. Repare, posso fazer um casaco de medida de peito 48, com um molde de 52, porque é aqui, quando o cliente prova, que ajusto», diz, entusiasmado.
«O corpo das pessoas varia muito, há uns que têm a barriga para fora, outros para dentro. Há ajustes nas mangas, muita coisa», conclui.

Uma das portas da sala de provas dá por fim acesso ao espaço de trabalho. Aqui, há máquinas de coser, tábuas de passar a ferro, pedaços de tecido caídos no chão, roupa alinhavada à espera da costureira. Há a famosa janela.
«Tenho clientes diversos. Há curiosamente uma geração nova com 30 a 35 anos que gosta de ter os seus fatos por medida. Tenho também muitos clientes de Angola. Neste caso, por exemplo, já tenho os moldes previamente feitos. Muitas vezes os clientes ligam e dizem: ‘quero um fato desta e da outra forma’. Estou aí no dia X. E eu faço. Quando eles chegam é experimentar, acertar pormenores e levar».

A confecção de fatos por medida, à distância, é possível porque Francisco tem moldes de todos os clientes. «Quando o cliente aqui vem pela primeira vez tiro, com uma fita métrica, as medidas de peito, anca, ombros, altura, tudo. Depois faço moldes em tecido». Este método de trabalho possibilita que o cliente faça encomendas. «E depois se aparecer aqui um cliente com medidas semelhantes é mais rápido, porque, cá está, o segredo vem depois na prova», acrescenta.
Hoje, Francisco conta com a ajuda de três costureiras, que alternam entre si. «Já ninguém procura o ofício. Isto é artesanal e demora a aprender», confessa.

Em média um cliente compra quatro a cinco fatos por ano, feitos com o preceito de mãos portuguesas que trabalham tecidos estrangeiros, sobretudo italianos. «Repare, uma pessoa vem aqui e paga a mão-de-obra que claro não é barata porque tudo isto é artesanal, não vai agora empregar o dinheiro numa fazenda ruim e as portuguesas estão muito más», remata o alfaiate.
As fibras não entram nesta casa. Francisco diz que «trabalha lã com caxemira, seda». A última tarefa na alfaiataria é o passar a ferro. Neste ponto, Francisco Brito mantém igualmente as tradições. O ferro é aquecido com carvão, «porque deixa o fato muito melhor», confessa. 


 Sara Pelicano
 Café Portugal