segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Estabelecimento (fora) de moda com odor a museu

A Casa Girão, estabelecimento de moda, em plena Baixa setubalense, continua a resistir, 51 anos após a fundação, ao pronto-a-vestir, sendo hoje, reconhece um dos proprietários, “mais museu do que loja”.

No tempo do pronto-a-vestir, em que modistas e alfaiates caíram em desuso, há um estabelecimento de moda em Setúbal que insiste, há mais de meio século, em vender tecidos a metro, medidos em cima de balcões de madeira, cujos tampos escondem pequenas gavetas que já guardaram artigos de retrosaria.
O odor a passado não se fica por aí. Estende-se pela forma como os manequins são vestidos, com panos soltos, que mãos habilidosas transformam, aparentemente, em peças de vestuário. Também pelas prateleiras recheadas de maços de fazendas, algumas das quais da época da fundação da casa, entre elas a que os comerciantes, antes do 25 de Abril, eram obrigados, por lei, a ter à venda. Não admira, pois, que forasteiros ao passarem em frente à “Girão” - é a ela que nos referimos - parem, com olhar de espanto, e peçam para entrar... e ver de olhos arregalados.
Por tudo isto, um dos fundadores desta raridade - fotógrafo nas horas vagas - não hesita em afirmar que este local de comércio é mais museu do que loja e que somente com subsídios sobreviveria.
Único estabelecimento em Setúbal, cujos manequins são vestidos com a “arte antiga”, que o pronto-a-vestir atirou para fora de moda, a Casa Girão – que em 1 de Outubro de 2003 comemorou as bodas de ouro – vai definhando, é o termo, impotente à força dos ventos da modernidade, onde tudo é comprado já feito, a dispensar tempo perdido em provas e a folhear figurinos.
José de Oliveira Pinho – 79 anos, nascido nas Fontainhas – um dos dois fundadores do estabelecimento, o único vivo, não tem dúvidas, quando afirma, voz embargada, olhos espelhados de lágrimas reprimidas para não rolarem pelo rosto sereno, que a “salvação da casa passava por subsídios”.
Mas, logo, ciente da realidade, adianta uma pergunta, em forma de quem sabe a resposta: “Mas onde é que eles estão?!”
Ao falar em subsídios, Oliveira Pinho não o faz porque está na moda, nem por defender o que quase se tornou instituição nacional. É o dia-a-dia, que os olhos lhe mostram, a porem-lhe as palavras na boca, ao ver, principalmente, em época de férias, os forasteiros pararem “boquiabertos em frente do estabelecimento”, pedirem para entrar e “admirarem as prateleiras recheadas de maços de tecidos, alguns do tempo da fundação da casa”.
De fora, aos menos atentos, a loja pode parecer mais um estabelecimento, igual a tantos outros de venda de artigos de vestuário, mas basta transpor a porta e olhar em redor, com olhos de ver, para perceber que quando o proprietário fala em museu não exagera.
Ele próprio (se) questiona “quantos jovens e crianças sabem que há alguns anos não havia fatos, calças e vestidos prontos a serem comprados e usados quase de imediato, que a roupa era quase toda mandada fazer em alfaiates e modistas”.
O estabelecimento, que antes de ser loja de fazendas, foi talho – visível nos mármores que ainda ostenta - e serviu de comércio a conhecida marca de máquinas de costura, 'cheira', efectivamente, a museu, não apenas pelas prateleiras repletas de tecidos – alguns que já nem se fabricam - vendidos à necessidade de quem compra e medidos com metro de madeira, mas pelos próprios balcões - com gavetinhas, por baixo do tampo, que já guardaram artigos de retrosaria - e pela forma própria de vestir os manequins com tecidos soltos, que mãos engenhosas transformam, aparentemente, em peças de vestuário.
Mas o estabelecimento não é apenas a loja minúscula que está à vista. Por trás, com separação de porta, há um pequeno armazém, também ele com aroma de saudade. Em mais prateleiras, há mais peças, muitas, de tecidos e caixas e caixas de botões, que não foram vendidos quando ainda eram comprados.

Tentativas falhadas

A Casa Girão, a exemplo de outras do género, algumas das quais acabaram, entretanto, por fechar, começou a sentir, de forma mais acentuada, a crise entrar pela porta, quando as grandes superfícies comerciais apareceram em Setúbal, com argumentos maiores, até então desconhecidos na cidade, a fazer concorrência ao pequeno comércio.
Mas, afirma Oliveira Pinho, “já antes, há coisa de 30 anos”, o esboço do retrato actual ganhava os primeiros traços.
Nessa altura, a 'Girão' procurou adaptar-se às circunstâncias e, nunca abdicando da venda de tecidos a metro, optou, em paralelo, pela comercialização de outros artigos, como camisas de homem e fatos de banho de senhora, mas o “espaço exíguo da loja, sem sítio para provas”, pontapeou as esperanças para a rua da desistência.
Mesmo assim, até porque as “outras lojas que vendiam a metro acabaram ou transformaram-se”, a 'Girão' não atirou a toalha ao chão, continuando de portas abertas, apesar de haver “dias sem um único cliente”.

Bailes de finalistas e casamentos

Por isso mesmo, porque os clientes escasseiam - ao ponto de em Julho o proprietário não ter levado “um tostão para casa” - é preciso aproveitar todos os dias, “procurar ganhar para as despesas que não encurtam”, a 'Girão', este ano, contrariamente ao que sempre aconteceu, não encerrou para férias de 15 de Agosto a 15 de Setembro.
A estratégia, que, salienta Oliveira Pinho, contou com a “compreensão do empregado, na casa há quase 40 anos”, não resultou.
Perante este cenário, construído pelo acumular de desilusões, reflectidas na fita da caixa registadora que não vê forma de ficar gasta, a Casa Girão pode deixar de o ser, num epílogo de sonho que chegou a ser verdade.
Até lá, a esperança vai sendo renovada, diariamente, por patrão e empregado, com o caminhar constante, de passos curtos, entre o balcão e a porta, na ânsia de ver aparecer um cliente, antes das festas de finalistas!
Nessas alturas, a “faixa etária dos clientes, maioritariamente senhoras, desce” e, à loja, “vem gente jovem que quer aparecer no baile vestida de forma original”.
No resto do ano, pelos mesmos motivos, “sucede, de maneira espaçada, o mesmo com os convidados dos casamentos”.
A pensar, essencialmente, nestes casos especiais, a 'Girão' dispõe, sempre, de figurinos actualizados, tendo já comprado os da época Outono/Inverno. É que, “muitas vezes”, explica Oliveira Pinho, as “pessoas quando entram no estabelecimento não sabem bem o que querem e vendo modelos actuais têm a vida facilitada”.
Naturalmente, os tecidos também foram adquiridos. O risco, afinal, sempre foi uma constante do negócio e se “mesmo acompanhando a moda é o que é”, o que seria se tal não acontecesse.

E depois do adeus?

Oliveira Pinho, por mais voltas que dê à cabeça, não encontra forma de a loja não vir a encerrar as portas. O trespasse e a venda são soluções que, atendendo ao local e ao espaço –além da loja, os dois andares de cima também são da 'Girão' – pequeno para o ramo a que se dedica, mas, provavelmente, a servir para outra actividade, não devem ser difíceis de encontrar.
Ao falar do assunto, porém, Oliveira Pinho deixa, outra vez, a emoção transparecer, na voz presa na garganta e nos olhos húmidos, pelo fim do projecto sonhado há mais de meio século, é verdade, mas, também, pela incerteza quanto ao futuro do empregado.
O empregado, afiança, “tem de receber o mesmo” do que ele e do que a sócia – viúva do homem que, com ele, fez da 'Girão' a “casa de referência que sempre foi” – “por uma questão de justiça e de moral”.
Quanto ao recheio, não tem dúvidas, “não vale nada”, que, “agora, nem os ciganos compram os restos de tecidos para os negociar, já vendem pronto-a-vestir”.
Depois, pergunta e responde, em voz sumida, como se falasse consigo próprio, “quem é que compra, por exemplo, tecido para mandar fazer um fato, quando por menos dinheiro, e sem perdas de tempo com provas, pode ter um logo feito? Nem eu”.
A propósito, lembra que, há tempos, lhe ofereceram um corte de fazenda para um e que “só no alfaiate ficaram 25 contos, dinheiro para poder, então, comprar quase dois, prontos a vestir”.
Por tudo isto, não o “surpreende que as fábricas de têxteis estejam a encerrar e que as lojas tenham amontoados de tecidos, alguns, os mais antigos, vendidos apenas, de longe em longe, a retalho, aos ranchos folclóricos”.
Com a certeza de que os tempos que já foram melhores não voltam, Oliveira Pinho, enquanto espera pelos bailes de finalistas, espreita a porta, na esperança de ver entrar uma senhora que queira ir a um casamento com a certeza de que o vestido que leva é único, de que um rancho folclórico precise de um retalho ou que forasteiros lhe peçam para visitar um estabelecimento de moda... fora de moda, quase museu.

O nascer do sonho

A Casa Girão, inaugurada em 1 de Outubro de 1953, começou a ser sonhada por José de Oliveira Pinho e por Cipriano Martins, já falecido, quando ambos trabalhavam numa loja, no Largo da Ribeira Velha.
Oliveira Pinho, que entrou para o estabelecimento – conhecido como a 'loja das bolas' - do padrinho, aos 11 anos, por “especial favor, sem ordenado, para aprender”, deixou a casa, que, também, “vivia fase menos boa”, passados 17, a ganhar 600 escudos mensais.
Mesmo tendo em conta que na altura a importância valia incomparavelmente mais do que hoje, não dava para juntar grande coisa. Por isso, ele e o futuro sócio tiveram de pedir, emprestados, 50 contos cada um.
Pelo trespasse do estabelecimento de venda de máquinas de costura, na Antão Girão, onde instalaram a loja, que ganhou o nome à rua, pagaram 30 contos e, volvidos cinco anos, embora, de início, os “apuros fossem pequenos”, compraram, por 90, os três andares do prédio.
Ainda estavam para vir, sem se vislumbrarem, os tempos de se olhar para a Casa Girão como olhos – e respeito - de quem observa um museu.

Artigos obrigatórios


Dos tecidos em prateleira, na 'Girão' – alguns já nem se fabricam, do tempo da fundação da casa – há os que, antes do 25 de Abril, os estabelecimentos comerciais eram obrigados, por lei, a ter.
Eram os chamados 'artigos tabelados' - chitas, riscados, pano cru –, referenciados com um rótulo vermelho e verde e loja que o não tivesse, lembra Oliveira Pinho, era multada, sendo que a “fiscalização era feita por agentes da PSP, prepotentes, sem qualquer preparação”.
A Casa Girão, também nisso, é um museu.
Tal patrão, tal empregado
A exemplo de Oliveira Pinho, o empregado – António Duarte Alves, de 49 anos – começou a trabalhar aos 11, mantendo-se, desde então, na 'Girão'.
Tal como o patrão, continua a atender os clientes de gravata, como era hábito no tempo em que a loja começou a “ser casa de referência”.

Um fotógrafo entre tecidos

Uma das grandes paixões de Oliveira Pinho, além dos tecidos, é a fotografia, com participação em cerca de uma vintena de salões, publicado um livro -'Rio Sado/ Ouro Azul' – e tendo outro na forja.
'Rio Sado- Ouro Azul', editado em 1996, é composto por 93 fotografias, a cores, todas legendadas.
O próximo 'álbum', com fotos obtidas nos anos 60 e 70, anteriores às inseridas no primeiro livro, todas a preto e branco, também ligadas ao Sado e às suas gentes, “mostram a escravidão em que viviam os que, no tempo da ditadura, dependiam do rio”.
Sem querer levantar muito a 'ponta do véu', o artista revela que o livro “deve sair, se tudo correr normalmente, este ano, editado pela Universidade Popular Bento de Jesus Caraça”.

In "www.mun-setubal.pt"

Alfaiate, uma profissão que vai desaparecendo


A liberalização dos têxteis e a alteração na forma de vestir são razões apontadas pelo decréscimo na procura dos alfaiates. Actualmente, os mestres alfaiates que existem são poucos e,
não existem jovens a entrar na profissão.
Não fosse dedicar-se, em parceria com a esposa, também à confecção já Francisco Vidal não sobrevivia da alfaiataria. “Desde 2007 se não tivesse a parte da confecção era muito difícil. Ganhava para as despesas e pouco mais”, adianta o alfaiate joanense.
Francisco Vidal considera que vai haver sempre alguma coisa para fazer mas “nunca mais vai ser um actividade rentável”. De resto, o organizador do 19º Encontro Nacional de Mestres Alfaiates, Carlos Godinho dá 20 anos à arte da alfaiataria para desaparecer.
Aliás, actualmente, os alfaiates não proliferam como outrora. Francisco Vidal tem apenas 49 anos e, será um dos mais novos do concelho. Pois, os “mestres” que se dedicam a esta actividade são usualmente mais velhos.
Godinho aventou que deverão existir “20 ou 30” alfaiates na faixa etária dos 40 anos.
Vidal diz que nos últimos cinco anos a actividade começou a “abrandar” devido à liberalização dos têxteis e, que nos últimos dois anos diminuiu cerca de 80%.
“Acho que este decréscimo da procura dos alfaiates tem a ver com a moda e, hoje em dia é propício ir ao pronto a vestir”, aponta Francisco Vidal apontando que as pessoas já não optam tanto pelo clássico e, preferem por exemplo as gangas.
O mesmo disse Carlos Godinho, avançando que há uns anos toda a gente tinha o seu fato.
Este alfaiate considera que a indústria do vestuário está muito desenvolvida podendo ser muito perfeita. Mas, “não é roupa feita à medida”. “Há pessoas que gostam de pequenos pormenores e, só recorrendo a nós conseguem”, adianta, acrescentando que os seus clientes são “exigentes a esse nível”.
Actualmente, um alfaiate é procurado por jovens que pretendam um fato para cerimónias, executivos e, pessoas que normalmente usam fato para trabalhar. “Um fato dura muito tempo”, diz.
Numa outra perspectiva e, na tentativa de encontrar as razões do decréscimo da procura dos alfaiates , Francisco Vidal nota que só depois de confeccionada é que o cliente pode ver o resultado final. “As pessoas estão agora mais habituadas a ir à loja, ver, experimentar e compram se lhes agrada”, afirma, sublinhando que há dez anos atrás nas épocas festivas toda a gente queria roupa nova o que agora não acontece.
Por outro lado, Vidal refere que foi tentando aliar o tradicional ao moderno de modo a facilitar as tarefas.
Godinho lamentou que nunca se tenha criado um estatuto, por exemplo de artesão, para o alfaiate.

A concepção de um fato
Fazer um fato implica uma série de tarefas prévias. Primeiro tiram-se as medidas ao cliente. Depois pegam-se nos moldes e, desenha-se no tecido, seguindo-se o corte das entretelas e dos forros. Há quem coza tudo à mão mas Francisco Vidal diz que cose quase tudo à máquina havendo apenas alguns pormenores que cose à mão. Este hábito foi uma das atitudes que tomou em busca “de um caminho que era a modernidade, de modo a haver mais eficácia”.
A prova do fato vem a seguir e, finalmente os acabamentos. Por isso, fazer um fato poderá levar 20 a 24 horas. “Mas como não é uma coisa standarizada pode demorar mais mas também pode demorar menos tempo”, salvaguarda Vidal, explicando que muitas vezes, um pequeno pormenor pode levar a que se demore muito tempo.
Alfaiate há 34 anos, Francisco Vidal começou a trabalhar no ramo em par-time já que a sua ocupação principal era a indústria têxtil. “Com 15 anos já trabalhava por minha conta”, narra, acrescentando que sempre fez part-times já que trabalhava das 6 às 14 horas.
Inicialmente, começou por fazer apenas calças mas decidiu aprender a fazer casacos. Assim começou a fazer fatos e, faz vestuário quer seja para homem quer seja para senhora.

Por: Alexandra Lopes

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O alfaiate dos toureiros


Manuel Marques faz casacas para cavaleiros tauromáquicos há quase meio século. Ele é um exemplo vivo de uma tradição que teima em manter-se


Com uma infinidade de reflexos ao sabor da luz, as casacas de cetim bordadas a fios de ouro e prata evocam os cavalos correndo de melenas ao vento pela lezíria. Biscainho não é o centro do mundo, sequer do Ribatejo, mas esta aldeia per­to de Coruche acolhe, numa das suas ruas, um pequeno atelier que abriga um tesouro de sapiên­cia. Uma alfaiataria que há 40 anos é conhecida até nos continentes mais longínquos. Ali se ves­tem os cavaleiros da corrida à portuguesa. Além do ritual de vestir, entre provas, supersti­ções e preparação, há o momento em que o ca­valeiro exige elegância e agilidade para facilitar o espectáculo que se quer perfeito. Esta arte de vestir toureiros teme, no entanto, o fim, pois os 75 anos já pesam a Manuel Marques, que ainda garante continuar a costura "até o corpo deixar". Depois dele não se sabe. Não tem aprendiz nem quem queira aprender.
Neste quase meio século, pela sua casa passaram quase todos os cavaleiros portugueses. Só um não entrou lá: Paulo Caetano, "porque ele tinha um cunhado que era estilista e lhe fazia as casacas". Manuel Marques tem grande admiração pelos cavaleiros, fez bons amigos nos muitos anos de relacionamento profissional, conhece as suas vidas e sofrimentos, sabe que muitas delas se escreveram com sangue, suor e lágrimas. Diz que, "ao contrário do que muita gente ima­gina", o meio dos cavaleiros é pobre. "Gastam aquilo que não deviam, os cavalos, o vestuário, é tudo caro", portanto, é preciso fazer magia, à semelhança da história do touro azul: "É comer e beber e trazer o lanche todo para casa." Apesar disso, a vida dos homens que se dedicam à cria­ção de gado não é um rol de choros e lamenta­ções porque a simplicidade e a esperança são partes marcantes do seu carácter.
Se um dia as touradas acabarem? "Pode acon­tecer. Não pelo gosto mas pelo fim das ganada­rias. Aquele animal de arena existe em condi­ções únicas. Não se pode sequer classificá-lo como carne. É bravio." As castas foram-se aper­feiçoando até se alcançar o touro de lide. "Aca­bando as ganadarias, acabam-se as touradas. Sem um animal com um instinto de vida ou de morte não há corrida." Foi para a festa brava que Manuel Marques trabalhou 40 anos entre cetins, tesouras e bor­dados. Homem simples e bastante comunicativo, o alfaiate já foi várias vezes alvo de prémios e condecorações. Na parede do atelier tem emol­durado o Prémio Nacional de Artesanato Tradi­cional, referente a uma menção honrosa por um casaco de cavaleiro tauromáquico. "Foi em Julho de 1993. Daquela vez não ganhei o primeiro prémio por não ter lá o traje com­pleto", explica.
Nasceu no Biscainho, em 1933. Filho de agri­cultores, quando chegou a uma idade em que a grande maioria dos meninos começava uma vida dura no campo, Manuel Marques, com 12 anos, sentiu a vocação de acordeonista. Chegou aos 17 não profissionalizado mas a fa­zer profissão da música. Quis o destino cruzar «o seu caminho um mestre do acordeão que também era alfaiate. "Pelas dificuldades, talvez a luta ou por ser uma profissão muito picuinhas, achei muita graça", afirma com um certo brilho nos olhos. E nesse tempo, sem frequentar colégio nem universi­dade, viu na costura "uma maneira de sobres­sair e subir um bocadinho na vida". Foi aprender para alfaiate com as dificuldades inerentes à profissão "porque não havia quem quisesse ensinar. Hoje é diferente: quer-se en­sinar e não querem aprender". O professor era muito pouco sabido, mas foi dessa forma que Manuel percebeu a fadiga de uma profissão aparente­mente fácil, vista por quem está de fora. Isso não o esmo­receu. Partiu para Lisboa rumo à Academia Maguidal, só para alfaiates, na rua da Palma. "Eram 250 alfaiates... isto nos anos 40", recorda. Estabeleceu-se na terra natal mas não calou o acordeão. O trabalho como alfaiate começou por desenvolver-se no trivial - nos trajes tradi­cionais usados no Ribatejo - sempre com ten­dências e com vontade de aprender. Quando viu que tinha muitos lavores, fez uma escolha para que os ensaios musicais não o roubassem ao corte e costura.
Sem esperar, o alfaiate que na época vestia os toureiros, Alberto Armindo - há 50 anos na Rua Augusta, em Lisboa -, atingiu uma idade muito avançada e abandonou a arte. Vivendo perto da Herdade da Torrinha, "os Ribeiro Telles começa­ram a influenciar-me para aprender e aproveitei a deixa", conta. A curiosidade nasceu e Manuel Marques deixou a vontade falar mais alto. Voltou à Academia para procurar a ciência do corte da casaca. Com a característica garra das gentes ribatejanas, entregou-se de corpo e alma à função e pouco tempo depois a sua determi­nação dava frutos. "Arranjei as bordadeiras em Coruche e iniciei a primeira casaca para o João Telles", vermelha, estreada numa corrida em Algés. "Os nervos eram mais que muitos e a experiência nula, desconhecia os produtos e cal­hei desastradamente a fazer uma mancha na casaca, pensei que era o fim da minha vida." A solução que encontrou naquela ocasião passou por "molhá-la e ficou toda igual... mas nessa noite não dormi, era uma pressão desgraçada". O desaire não manchou a sorte e a casaca "foi um sucesso", numa vida que os juntou e uma amizade que os uniu. Ficou "com tudo na mão"; como alfaiate dos cavaleiros da corrida à portuguesa. Essa primeira casaca custou 25 contos. Hoje um trabalho daqueles custa mais de 1500 euros, e se for bordada a canotiIho - bordado feito em fino arame dourado - pode chegar aos três mil euros.

Antes dos 30, Manuel Marques conhece o amor, nos olhos de Margarida. Costureira no atelier, o alfaiate fala para a mulher sempre em tom de chalaça. "Hoje só faz o que ela quer", graceja. Sem deixar de referir toda a ajuda e dedica­ção que Margarida lhe tem dado ao longo da sua vida profissional. "Prepara o meu trabalho e tam­bém tenho um alfaiate que me ajuda quando estou atrapalhado nos arreios de cortesia." Cos­turam tudo o que se relaciona com o cavaleiro. Sempre bem-disposto, explica que faz "a casaca, a camisa, o colete, o calção, o tricórnio e os arreios de cortesia. Só não faço as botas e o cava­lo", apesar de também o vestir. A montaria traja os arreios de cortesia: a cobertura, as abas, a rabadilha, a capa de cela e o charel. "É uma obra que demora cem horas, que tem trabalho de correei­ro e leva tanto tecido como uma casaca e mais bordado." Ainda assim, os apetrechos do cavalo custam sempre menos 5OO euros que a casaca. Habitualmente, os cavaleiros ao encomendarem uma casaca pedem também os arreios para que o traje combine na perfeição.
A primeira das tarefas do alfaiate é afiar o giz. Com regra, traça os cetins especiais, normalmen­te estrangeiros e muito caros. Após tirar as medi­das, corta o modelo escolhido pelo cliente, alin­hava a casaca no manequim, manda bordar e entretelar; já montadas as peças, são depois ana­lisadas juntamente com o tricórnio e os arreios, revistas as casas de botão adornadas em soutax prata (um cordão espalmado), faz uma última prova e um mês depois a obra está pronta. Os bordados são à mão ou à máquina, em linhas de várias cores, a ouro ou prata. A memó­ria dos desenhos para bordados está arquivada em cartões antigos, guardados numa estante, tesouros mudos, até serem chamados a desem­penhar uma tarefa. A empreitada hoje já não esta a cargo das mulheres. A comandar as "bordadeiras" na realização de um motivo estão as máquinas e os computado­res. Cada desenho, ou mo­delo, pode ser realizado em três ou quatro jogos de cores diferentes, de forma mais perfeita e mais barata. Nu­ma mistura bizarra entre o arcaico e a alta tecnologia, o atelier está em condições de satisfazer qualquer enco­menda especial, quer em termos de colorido quer de motivo, em lante­joulas, missangas ou a canotilho. "Com as bordadeiras era tudo manual. Hoje temos os com­putadores que fazem os trabalhos com um software que permite novidades", explica Manuel. No tempo em que a mão-de-obra era barata, eram bordados até em Espanha pelas freiras, mas tudo isso acabou. "Agora para bordar a canotilho são pessoas com muita idade e nem paga o trabalho", garante.

A costura já não é tão exigente como antiga­mente, as novas tecnologias facilitam o tempo e as mãos, que manejam menos horas a agulha em riste. Mesmo assim, a vida de alfaiate não é para qualquer um, é preciso ter vocação, por isso, Manuel está certo que "daqui a 20 anos não há um alfaiate em Portugal". Acredita, contudo, que os processos modernos não deixam nada ficar para trás, diz que outras técnicas virão e por certo será encontrada uma alternativa... Talvez a carência seja motivo de atracção para os cos­tureiros no futuro. No entanto, parece que tal não tem vindo a acontecer.
Nem sempre as casacas de uma corrida à por­tuguesa tiveram a actual configuração. Na pri­meira geração, os cavaleiros toureavam com uma casaca solta, um traje Luís XV, que desde então sofreu modificações. Actualmente tem dois machos atrás, é uma obra de silhueta com borda­dos imaginados pelo ante­cessor de Alberto Armindo, o alfaiate Rosado e Pires. Am­bos antecessores de Manuel Marques, conceberam dese­nhos que se enquadravam na personalidade portuguesa mais tradicional. Pelo contrá­rio, "os bordados espanhóis não possuem uma sequência tão completa". O colete - que também é bordado - possui o mesmo desenho da casaca ou variado. A mo­dernidade trouxe mais liberdade à expressão artística e já nada é tão formal. Contudo, a tradi­ção das rendas nos punhos da camisa e no bolso direito do colete permanece. Atrás, a casaca tem um laço preto que vem do tempo do marquês de Marialva, que impôs algumas regras no século XVIII, proibindo a morte das reses na arena. Dizia-se que o laço negro na casaca do cavaleiro era em sinal de luto pela atitude do marquês, mas Manuel Marques garante que não. "Acabou o laço que prendia o cabelo do cavaleiro e veio com Rosado e Pires para a casaca. O cabelo já não se usava empolado mas sim com o tricórnio." Pa­ra o enfeitar aplica-se os brasilhões em canotilho, doutrina do senhor Azevedo, que tinha uma chapelaria na Baixa de Lisboa, e as penas de aves­truz transformadas em belas plumas brancas. E é ao ritmo sabiamente cadenciado da tesoura no cetim que o alfaiate, sentado em frente ao teflon mágico, que não mancha os tecidos, vigia a sua obra, à caça do mínimo defeito, até atingir a perfeição desejada. Tal grau de exigência limi­ta a produção a não mais de uma a duas casacas por mês. Mas a busca da perfeição começa bem antes, quando o cavaleiro escolhe a cor do teci­do, porventura uma cor que lhe tenha dado sorte noutras corridas. Na verdade, as casacas têm cores tradicionais, as mais acentuadas: o verde, o azul, o vermelho e o bordeaux. Só que a modernidade chegou também à paleta das cores e a variedade já inclui tons pastel. Na arte de bem vestir na arena está ainda a camisa. Essa peça tem um plastron - tipo de gravata com umas presilhas - inspirado nas usadas pelas famílias burguesas. Por ser pouco confortável, os alfaiates modificaram a camisa optando por um colarinho forrado a piqué com a dita gravata com o mesmo ponto, mais fun­cional. Basta-lhe pregar um alfinete dourado e está pronta para a lide.
Manuel Marques usa um segredo nas suas casa­cas que não revela - diz apenas que aprendeu com um amigo em Saragoça. "É alfaiate do ape­ado que conhece o segredo das chaquetillas e das luces. Aplico-o nas casacas e nas jaquetas." Mais não faz, os toureiros a pé portugueses são por isso obrigados a ir comprar os fatos a Espanha. Por cá, cavaleiros como António Ribeiro Telles, Rui Salvador, Ana Batista, Sônia Matias ou Luís Rouxinol preferiram, e ainda preferem, a expe­riência e elegância que Manuel Marques passa para as suas obras.
"No campo da alfaiataria, o trivial está morto." Entre uma parafernália de cores e tecidos, fora da época das touradas, Manuel aplica-se nas jaquetas e nos fatos à portuguesa usados nos festivais e na feira da Golegã. Às vezes aparecem trabalhos diferentes. "Há tempos costurei as capas para a Confraria do Torricado de Samora Correia." Um hábito que pegou. •

PAULA MOURATO
GONÇALO BORGES DIAS


In "Notícias de Sábado"


sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Trabalho minucioso à sua medida

Carlos Sousa dedicou toda a sua vida a uma arte que poucos conhecem. Desde que se lembra que queria ser alfaiate e começou a concretizar este sonho aos 14 anos. Hoje é um dos melhores a nível nacional e internacional, estando neste momento a trabalhar para outros países. Para além disso, tem uma boutique onde encontra todos os acessórios necessários para se vestir bem, com a qualidade de uma reconhecida marca italiana


Se se deslocar até ao Porto, vai encontrar um local diferente, que não está habituado a ver regular­mente. Falamos do Carlos Sousa Alfaiate, onde a arte da alfaiataria continua em prática, aliada ainda a uma boutique de alta gama, onde encontrará peças de uma marca ita­liana. Carlos Sousa começou a trabalhar como alfaiate ainda antes de completar l4 anos de idade em Vila Meã, terra onde nasceu. Costuma­va passar pela casa do seu primo, que praticava esta profissão, enquanto ainda era estudante, e costumava dizer-lhe que era esta arte que que­ria fazer no futuro. "Vim depois para o Porto e trabalhei com vári­os alfaiates, com quem aprendi bastante. O primeiro lugar foi em Sá da Bandeira e depois fui per­correndo outros espaços", começa por contar o entrevistado. Depois de cumprir o serviço militar obrigató­rio, voltou ao Porto onde ficou res­ponsável por um outro espaço, "estava responsável pelo corte, pelas provas e pelo atendimento ao cli­ente e, passada um ano, tornei-me sócio de uma empresa ligada à área".
No entanto, foi há quatro anos que Carlos Sousa decidiu que esta­va na altura de ter um espaço só seu, que se divide em duas áreas distin­tas: alfaiataria e boutique. Nesta se­gunda área, o cliente pode encon­trar todas as peças necessárias para sair vestido "dos pés à cabeça". A marca, essa, é italiana, uma vez que a qualidade é um dos parâmetros es­senciais para o sucesso. Já o calçado provém de um espaço localizado perto da loja, existindo uma parce­ria entre este alfaiate e a proprietária da loja de calçado. "Aqui estamos direccionados para uma classe média alta. Verificamos que cá existem bastantes casas que têm oferta para as outras classes sociais e, por isso, era importante para mim po­der disponibilizar algo acima da média. Para além disso, não existem muitos locais com o apoio de um alfaiate", afirma o entrevistado. Segundo Carlos Sousa, acaba por não existir concorrência neste sector, uma vez que poucos são aqueles que ainda aprendem este oficio, Aliás este alfaiate faz parte de uma geração que começou a aprender muito cedo esta arte, já que na maior parte dos casos, depois de se completar o quarto ano de escolaridade, homens e mulheres começavam a trabalhar, o que faz com que o interlocutor conte já com mais de 30 anos de experiência. "Esta não é uma arte fácil de aprender, é extre­mamente minuciosa, exige empe­nho e vontade de aprender. Tem que se gostar muito disto para en­veredar por este ramo de activida­de e são cada vez menos os alfaia­tes em todo o país. Os jovens de hoje não se interessam por esta pro­fissão porque querem algo que possam aprender mais rapidamen­te", sublinha o entrevistado. Desta forma, concorrência não é um vocábulo que faça parte dos dicionários dos alfaiates que existem no nosso país, uma vez que já são muito poucos aqueles que sabem trabalhar nesta área, que poderá es­tar em vias de extinção daqui a al­guns anos. "No entanto, ainda exis­tem mesmo muitas pessoas que gostam de mandar fazer um fato por medida, notei muito isso quando abri este espaço.

Apesar de ter fatos por medida, também execu­tados manualmente e de uma gran­de marca italiana, a verdade é que muitos são aqueles que preferem mandar fazer de raiz e acabam por acompanhar todo o processo com as provas. Aliás, por vezes tenho que pedir auxilio a alguns colegas alfaiates, porque as encomendas são cada vez maiores", refere. E se não se puder deslocar até este espaço, não se acanhe, até por­que o profissionalismo é, tal como as peças, da mais alta gama. Como tal, Carlos Sousa desloca-se, sem­pre que necessário, até junto do cliente, seja em Portugal ou no estrangeiro. "Neste momento estou tam­bém a trabalhar para alguns mi­nistros estrangeiros com bastante regularidade, recebo também bas­tantes encomendas,. Para além dis­so, há a possibilidade de me expan­dir para outros países em breve", conclui este alfaiate que recebe cada cliente com a sua simpatia e a sua arte, à qual dedicou toda uma vida.

In "O Primeiro de Janeiro"



quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A alta qualidade aliada ao respeito pela tradição


Há quem diga que os alfaiates são coisa do passado, mas ainda há quem tenha muito trabalho para satisfazer os seus clientes como é o caso da Alfaiataria A. Gonçalves.



­­­­­­A. Gonçalves é uma alfaiataria de tradição familiar situada no centro do Porto desde 1973. Uma empresa de sucesso num tempo em que esta arte se desmorona a cada dia que passa. A. Gonçalves marca pela diferença ao nível da qualidade e de implementação de novas tecnologias de futuro. Em entrevista ao nosso jornal Victor Gonçalves fala-nos sobre a empresa e o início da sua actividade como alfaiate: "a loja é do meu pai. Estou aqui há alguns anos, o meu irmão também de vez em quando está cá e tentamos dar continuidade ao negócio de família". Victor Gonçalves seguiu os passos do pai desde miúdo, "O meu pai é alfaiate, e como eu era um menino rebel­de, para ter controlo sobre mim obrigava-me a estar sempre a seu lado. Comecei a ver o que ele fazia e a ganhar gosto pela arte­". Alfaiataria A. Gonçalves sen­do uma empresa muito conceitua­da no Grande Porto oferece servi­ços de alta qualidade pautada pela constante evolução. As principais actividades desenvolvidas pela em­presa são a confecção de roupa exterior, principalmente para homem, e a manutenção da roupa que produzem. Ao contrário do que se pensa, muitos clientes de Víctor Gonçalves são jovens oriundos das classes ­dias altas. A qualidade é a palavra de ordem desta empresa "Nesta loja temos um nível de qualidade muito bom. No que diz respeito a tecidos, nada de misturas com ­fibras artificiais. Isto é um nível muito elevado em relação a qual­quer pronto-a-vestir com qualida­de. Quando se faz um fato na alfaiataria geralmente dura bastan­te tempo, apesar das lavandarias estragarem muito a roupa. Não é só o tecido em si, mas o que está dentro dele que permite resistir ao tempo e às lavagens". Devido à quase extinção des­te sector de actividade no nosso país a concorrência é quase nula, "­não há concorrência. Somos tão poucos que não nos podemos comparar. Não há concorrência, antes houvesse, assim a gente evoluía. No entanto não pode­mos parar, temos que evoluir, e nos últimos dois anos temos evoluído bastante­". Nesta empresa existe a necessidade da evolução constante nos métodos de fabrico e adaptação a novas tecnologias. Victor Gonçalves criou um site na internet e um blog, promovendo assim a empresa de que faz parte c implementando uma interactividade com outros profissionais da área. "­Estamos sempre a par das últimas tendências. Na matéria-prima há muita coisa actual, há muita coisa que evolui. A nível de tecidos são de fábricas tradicionais e conceituadas: Dormeuil, Ermenegildo Zegna, Holland & Sherry, Scabal­ entre outras. São empresas de alta qualidade, muito antigas e que evoluíram bastante­ ". Interrogado acerca do crescente desaparecimento de "seguidores" Victor Gonçalves não tem dúvi­das: "­­­Vai acabar. Poderá continu­ar com pessoas que tenham jeito para esta actividade mas sem serem profissionais na área. Por outro lado, poderia aumentar se, eventualmente, a cultura de vestir mudasse, seja por razões económicas, ou por razões culturais. Se as pessoas se mentalizarem ou começarem a aprender, seja por influencia dos pais ou família, se começarem a ter cultura de vestir, se souberem escolher, ver as coisas com outros olhos que não seja por um certo exibicionismo, talvez aí esta profissão ganhe outro fôlego". Actualmente as pessoas ligam mais à imagem do que à qualidade dos produtos, mostrando-se por vezes mais do que são. Curiosamente neste sector de actividade não existe formação profissional, sendo que a prática e os sítios onde trabalhou é que faz do alfaiate o que é hoje. Se­gundo Victor Gonçalves, "qual­quer alfaiate vai tentar, acima de tudo, ser perfeito naquilo que faz; independentemente do tra­balho que possa ter, vai tentar ser perfeito". Numa mensagem aos nossos leitores e tendo em conta o futuro desta empresa, Victor Gonçalves termina esta entrevista apelando ao bom gosto das pessoas: "Tra­balhar, fazer o melhor que puder­mos e soubermos e esperar que as pessoas tenham bom gosto e que aprendam a ver as diferenças de qualidade. Se as pessoas ganha­rem algum conhecimento e algu­ma cultura talvez esta actividade, de forte tradição, ganhe forças e volte a ser o que era".

In "O Primeiro de Janeiro"

domingo, 4 de janeiro de 2009

A Casa do Fato



Um dos
últimos alfaiates lisboe­tas de grandes tradições. É aqui que o noivo pro­cura o fato para usar naquele dia e os clientes fiéis encontram a mesma elegância de sempre, feita à medida de cada um. Uma reserva de bom-gosto, na Nunes Corrêa.


1
. Os reis e o artesanato
Esta casa no início até fazia as fardas para os reis irem casar. Mas, hoje em dia, estas casas tão específicas de alfaiataria estão em via de extinção, está tudo virado para o pronto-a--vestir e nós fazemos quase «artesanato».

2. Ir à Baixa fazer o fato
Abriu ao fundo da Rua Augusta em 1856 com Jacinto Nunes Corrêa, depois passou para es­te número 250 e, em 1958, o meu patrão ficou com a casa: era o Sr. Leão, o meu patrão desde 1959, uma pessoa fora de série. Ele criou aqui uma famí­lia entre nós, conhecia muito bem as pessoas e as situações. Dizia-nos: «Nós temos sempre de dar razão ao cliente mas o cliente pode não ter sempre ra­zão, é uma pessoa como nós, é nossa obrigação compreendê-lo e saber dar-lhe a volta!". De­pois trabalhei com o filho e agora com o neto! E a família tem sido muito unida no senti­do de conservar esta casa, ape­sar de as coisas estarem difíceis para este negócio de tradição.

3.Provadores e elevadores

A elegância comprova-se nos provadores do primeiro andar, simplicidade na decoração. E ainda assim a D. Isaura suspi­ra pelos tectos "lindíssimos, com pinturas feitas à mão», agora tapados pela sóbria ma­deira. Mas para visitar o atelier onde o alfaiate guarda a sua ar­te, o melhor é usar o elevador ao lado dos provadores para su­bir três andares. É um antigo elevador também bonito e em madeira, onde, certamente há muitas décadas, os clientes que sobem para as medidas e ava-­
liação do alfaiate ficam ainda mais seguros da qualidade da casa com o diploma exposto:
«Estados Unidos do Brasil - Ex­posição Nacional de 1908 - Rio de Janeiro - O júri superior con­feriu o Grande Prémio a Nunes Corrêa & Cia, Lisboa»...

4/5. o fato de casamento
É isso que o jovem procura aqui, uma coisa especial para esse dia. Hoje há uma oferta muito grande, com os centros comerciais e tudo, quem vem para a Baixa às compras são aquelas pessoas que gostam mesmo de cá vir. É unia clien­tela tradicional, vinha o avô, veio o filho e agora vem o neto, mas o neto às vezes acha tudo muito clássico e prefere o pronto-a-vestir. Também temos, claro. E temos também aqui os sapatos da Leão & Leão, sapa­tos clássicos e de qualidade, o mais vendido aqui na casa.

6. Vestir o noivo

Podemos vestir o noivo de cima a baixo: da camisa à casaca, da gravata (ou plastron, largo e preso com alfinete) ao cinto, do colete aos sapatos - o sapato tem de ser preto, sempre, pois o fato só pode ser cinza, antra­cite ou azul-escuro, e, claro, a meia também tem de ser preta. Aqui só ainda não temos a roupa interior, mas também vai chegar em breve, garante D. Isaura. O Bernardo, que já cá está há vinte anos, é que sabe melhor, ele é que veste os noi­vos.«Ah, mas o noivo veste-se como quer! O que nós aqui ves­timos ao noivo é o fraque ou o fato tradicional, que a maioria prefere, sempre preferiu. E tam­bém temos o pronto-a-vestir, claro, tivemos de nos adaptar ao mercado, mas não tem nada a ver com o fato feito à medida. E todas as adaptações, os ajus­tes, são sempre feitos pelo al­faiate!»

7. Provar e vestir

«O cliente só tem de dizer como quer, depois faz as provas e só vê o fato quando lho entregamos já pronto». O artista, o contrames­tre, é o Sr. Gomes, que sabe o que fica bem a cada corpo e per­cebe de cortes e medidas - e há meia dúzia de anos actualizou novos moldes pela melhor al­faiataria italiana. Mas os porme­nores - como assentar um fato na perfeição mesmo se o clien­te tem o ombro descaído - não se aprendem nos moldes: só a experiência faz um cliente ele­gante. E o Sr. Gomes tem a dis­crição necessária para dizer e fa­zer o que convém a cada um.

8.Quem vai à Baixa?

Quem nos manda fazer os fa­tos são clientes quase todos já de meia idade. Mas por esta ca­sa passaram todos os homens de negócios, todos os políticos, desde o Mário Soares ao Sá Car­neiro, conheci essa gente toda. E tínhamos aqui um ambiente como uma família, todos os empregados e os patrões. E eu era a mais novinha deles todos quando entrei, faça as contas, já tenho 63 anos... estou aqui há 45! Se Deus quiser para o ano reformo-me. E aqui até conheci o meu marido, aqui ti­ve o meu filho, já nasceu o meu neto... Mesmo sem querer, is­to faz parte de mim. Hoje é di­ferente, já não se trabalha as­sim, mudam os tempos, os clientes...


9. Alfaiate,espécie em extinção
O Sr. Gomes trabalha há 48 anos neste ofício, começou a aprender ainda na província aos 15 anos, «tive de pagar pa­ra aprender e só depois come­cei a ganhar dez tostões por dia». Veio para Lisboa, em 1959, trabalhar para uma das muitas alfaiatarias que exis­tiam na época, quando cada qual gostava do fato feito à sua forma e medida (curiosamen­te esse é também o ano em que a D. Isaura começou a trabalhar nesta casa). Esteve em vários sítios e aprendeu com vários contramestres, grandes mestres da arte da alfaiataria. Há três anos, este «maravilho­so alfaiate, um dos últimos desta arte em extinção», como é descrito nas palavras de D. Isaura, veio para a Nunes Corrêa. Porte distinto e reser­vado, o mestre apenas se queixa de não haver ninguém inte­ressado em aprender a arte. «é moroso, leva muito tempo a aprender, nesta profissão não se ganha dinheiro fácil», mas não se importa de nos ajudar a preparar fatos e manequins para a fotografia.

10.Mãos de fada

A palavra costureira, costureirinha, faz lembrar velhas co­médias a preto e branco com Beatriz Costa. Mas não são tão antigas as costureiras da Nu­nes Corrêa: faz este mês 17 anos que a D. Lurdes trabalha neste quarto andar da Baixa pombalina. Alinhava, costura e dá assistência ao trabalho do alfaiate juntamente com as co­legas, a D. Luísa - que apesar de trabalhar em costura há quarenta anos só no ano pas­sado veio para aqui - e a se­gunda pessoa mais antiga na casa, a D. Céu -«sou a mãe de­las todas, trabalho aqui há 37 anos».

11. As máquinas e as pessoas
Mas são quase desse tempo a preto e branco as máquinas e os ferros com que nesta casa se mantém a tradição. Mas o difí­cil seria substituir estas máqui­nas por novas que trabalhas­sem tão bem... E o que dizer das pessoas!"

In "Notícias Magazine"

Texto: Sandra Oliveira
Fotos: Neni Glock