sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Esta bARCA é "um confessionário sem padre" onde cabe de tudo

 O que é que uma cidade entrega de si mesma, quando o que está em causa é recuperar daqui a cem anos aquilo que ela hoje é? Para ter a resposta absoluta a esta pergunta há que esperar os tais cem anos, até 2112, e assistir à abertura da bARCA da Memória, aquela que faz parte do programa de animação sócio-cultural Manobras no Porto e que, até sábado, vai receber as recordações que cada um ali quiser deixar, para, no domingo, ser afundada no mar. Lá dentro vão cartas, muitas cartas. Mas também CD, fotografias, sameiras, porta-chaves, tesouras e as estatísticas criminais do Porto do ano passado.

  O alfaiate Victor Gonçalves receia que daqui a cem anos a sua profissão seja apenas uma memória
            O alfaiate Victor Gonçalves receia que daqui a cem anos a sua profissão seja apenas uma memória


O Comando Metropolitano do Porto da PSP e um alfaiate da Baixa da cidade quiseram associar-se ao projecto imaginado por José Carretas e que a associação cultural Panmixia está a pôr em prática. Das mãos do comandante metropolitano Pinto Vieira, a barca irá receber várias folhas de papel. "A estrutura orgânica do comando, uma lista nominal de todas as pessoas que trabalham na PSP do Porto e uma sinopse da estatística criminal do ano de 2011", explica Pinto Vieira ao PÚBLICO. A fechar a oferta está o brasão de armas da PSP e um desejo dito entre sorrisos: "Espero que, quando abrirem a barca, daqui a cem anos, possam dizer: "Já em 2012 o Porto era uma cidade tranquila.""

Se a cápsula "hermética, inviolável, inoxidável, impermeável e não poluente" que vai guardar a oferta da PSP conterá, sobretudo, papéis, a que couber ao alfaiate Victor Gonçalves terá um recheio bem mais diversificado. Lá dentro irão tesouras, linhas e dedais, uma fita métrica, duas escalas, agulhas de coser da extinta Checoslováquia, tecido, giz e um livro técnico. Tudo instrumentos do trabalho que ainda hoje desenvolve, num 1.º andar da Rua das Galerias de Paris.

O alfaiate, de 54 anos, soube do projecto "pelos jornais" e quis que parte da memória do Porto de 2012 fosse também a sua. "Achei a ideia muito interessante e quis participar, porque a minha profissão, daqui por alguns anos, vai ser mesmo uma memória."

Além dos instrumentos de trabalho, Victor Gonçalves vai oferecer uma medalha do encontro anual de alfaiates. E pensou em colocar num CD o conteúdo do blogue que criou e alimenta (blog-dos-alfaiates.blogspot.com), mas ficou-lhe a dúvida: "Daqui a cem anos o CD já deve estar obsoleto, sei lá se ainda há forma de o ler."

É uma boa questão, admite José Carretas, o criador da barca da memória portuense. E, para prevenir, é bom que a Panmixia ou a Câmara do Porto ponham já de lado um leitor de CD que funcione daqui a cem anos, porque dentro da barca, é garantido, vão vários discos compactos. Carretas confessa ao PÚBLICO que espera receber muito mais doações do que aquelas que até agora foram entregues nos seis pontos de recolha - miradouros da Sé e da Vitória, Passeio das Virtudes, Largo d"A Conquistadora (Miragaia) e estação de metro da Trindade, entre as 15h e as 19h -, mas acredita que, "à boa maneira portuguesa", os portuenses vão comparecer em massa até ao final da tarde de sábado. "Temos cerca de 400 objectos, mas a barca tem capacidade para cerca de dois mil", diz.

E o que lá está guardado? Ele desfia o que lhe vão transmitindo dos pontos de recolha. "Muitas cartas e poemas. Alguns CD com registos musicais. Um senhor levou a chave de casa. Outro, seis volumes encadernados por ele com a história da sua vida desde o casamento. Há coisas ali que quer que um neto leia, mas não a família actual. Temos postais, fotografias, dentes de leite, latas de cerveja e de coca-cola. Uma senhora disse que ia levar uma francesinha. Outra levou uma carta aos pais que já morreram. Uma estrangeira levou o Kamasutra. Entregaram-nos um paralelepípedo do Porto. Um senhor de idade levou uma fotomontagem feita por ele, alusiva ao ET, que mostra uma menina no céu, com uma bicicleta. Diz que é uma recordação da primeira vez que foi ao cinema com a neta. Deixaram-nos um euro, uma caderneta de cromos e um cachecol do FC Porto..." A lista continua. "Somos um confessionário sem padre", diz Carretas. Até às 19h de sábado, a barca vai estar aberta para muitas mais memórias.

 In Público
 Patrícia Carvalho
Adelaide Carneiro