Alfaiate à moda antiga resiste no Porto
Vitorino Sampaio Leite, alfaiate de profissão, enternece-nos quando fala da seu pequeno atelier, como se fosse uma casa de bonecas onde permanecesse desde a adolescência, por gosto de confeccionar as vestes dos senhores do seu imaginário. Também disfarça um já pouco comum amor à arte, preferindo perder a ganhar se o cliente questiona o seu trabalho, que por vezes habilmente molda a um corpo já sem medidas ou sem modelos fabricados nas redes comerciais.
Entregue ao mister desde 1958, e há 33 anos instalado na Avenida Brasil, à Foz do Douro, o artífice é simplesmente desconhecido de parte das gerações mais recentes, que ignoram haver ainda fatos de homem que se fazem por medida, que se provam duas e três vezes para assentar bem as costuras ou para combater a teimosia de uma ruga persistente.
«Gosto da profissão mas poucas vezes me agrada o que faço», exterioriza, deixando a impressão da exigência com que constrói as suas peças, desde as indumentárias normais até à chamada «obra de cinta» (smoking ou casaca), acolitado por dois ou três colaboradores que resistiram a um trabalho praticamente em extinção. Apesar de tudo, obra não lhe falta, embora a procura venha apenas do pequeno estrato que fez frente ao pronto-a-vestir ou que não se imagina com outro traje senão um clássico «blaser» ou um paletó confeccionado em puro algodão do Egipto. O custo não é exagerado se avaliarmos o preço que hoje atinge qualquer insignificância «hand made», ou os fatos italianos «prêt-à-porter» que proliferam nas lojas da especialidade. Já não haverá muitas alfaiatarias do género no Porto a quem o cliente possa confiar um bom corte de fato. As roupas de marca quase que lançaram este pequeno grupo de artífices num beco sem saída, apesar de o rigor e qualidade que teimam oferecer permita manter ainda um lote de perduráveis apreciadores.
«Os clientes é que fazem a casa»
«Os clientes é que fazem a casa, embora as mãos também tenham o seu valor», constata Vitorino Leite, segurando no braço direito um casaco alinhavado sem mangas. O trabalho, como é fácil perceber, tem muito que se lhe diga, sendo sujeito a vários testes: na primeira prova, fazenda e forros são moldados ao corpo do cliente, sendo posteriormente testados de novo, mas já com as frentes elaboradas. Normalmente recorre-se a uma terceira prova, com manga e gola alinhavada, antes de se concluir a peça, que finalmente é rematada e engomada. Antes a fazenda é sujeita ao chamado «ressoo», sendo só depois cortada e preparada para as provas. Uma tarefa delicada, mas que é acompanhada de um saudável convívio com clientes, que o artista aproveita para pôr a conversa em dia e contar as últimas novidades.
O alfaiate tem três colaboradores - profissionais que o acompanham há décadas, sempre fiéis, «uma equipa maravilhosa», como o próprio a define, reconhecendo que dificilmente encontraria gente nova para trabalhar à sua maneira. «São profissionais excelentes, e merecem tudo porque me acompanham há muitos anos».
Vitorino Leite não parece ser daqueles profissionais que leva os problemas para casa, que dorme com eles em cima do travesseiro, mas preocupa-o atrasar a obra e o cliente apressado que lhe deixa à porta a mensagem que todos bem conhecemos: «Preciso deste fato para sexta-feira, sem falta».
Da sua clientela diz ser «gente de princípios que gosta de vestir bem» (o artista aprecia enaltecer as pessoas que o procuram, que considera «a razão de ser da sua alfaiataria»), possuindo também um rol de «amigos da casa» que com ele se aconselharam e depois acabaram por gostar do seu trabalho. O alfaiate orgulha-se de ter em carteira «gente de grande exigência», constando do seu ficheiro desde comandantes de navio até conceituados ídolos da canção, como o saudoso Tony de Matos.
Especialista em corte clássico, Vitorino Leite molda-se ao gosto de qualquer pessoa, mostrando-se capaz de executar desde o modelo mais ligeiro até aos fatos de linha italiana exclusivos das afamadas catedrais da moda. «Executo qualquer trabalho, clássico ou moderno, só que o cliente tem que me dizer bem o que quer», explica.
Alfaiataria ocupa a casa onde morreu António Nobre
A alfaiataria funciona como qualquer casa vulgar do ramo. Aliás, o cliente pode comprar ali os forros, tecido e até botões, tudo das melhores origens. Em matéria de fazendas o artista prefere não arriscar, possuindo padrões para todos os gostos, desde as peças nacionais até aos consagrados fios italianos e ingleses.
No Inverno, como é natural, o trabalho aperta e o tempo escasseia à medida que o Natal se aproxima. A alfaiataria confecciona entre dois a três fatos de homem por semana, podendo até satisfazer mais clientes que lhe encomendam peças soltas. «Os alfaiates têm fama de demorar muito graceja, embora nos garanta que nunca deixou ficar um cliente desprevenido. «Fui sempre pontualíssimo, sempre muito direitinho. Nesse aspecto não tenho histórias para contar».
De resto, Vitorino Leite parece nada ter a recear. E é vê-lo, pouco depois do meio-dia, conversador, a pisar sossegadamente o passeio da Avenida Brasil, em direcção a casa. A alfaiataria ocupa o rés-do-chão do edifício onde morreu António Nobre, uma antiga casa de praia de que Vitorino se orgulha e que parece não querer abandonar por nada deste mundo, apesar das propostas que já lhe chegaram às mãos. No entanto, já com mais de sessenta anos de idade, o alfaiate não deixará continuadores no ofício.
Mas o artista, para já, não pensa nisso, preferindo recordar os tempos em que se decidiu pela profissão, ensaiando os primeiros golpes de agulha e os precoces alinhavos, e lembrando o rigor que sempre dedicou ao seu mister: «No começo nunca me agradou o meu trabalho, queria aprender sem deslizes; quando corria mal, sem dar a entender a alguém, afastava-me e chorava».
Manuel Morato (texto)
Angela Velhote (foto)
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