Resfastelados num banco do jardim da vila, onde o povo lavava no rio, sob a copa acolhedora de uma acácia, era ali que os reformados passavam as suas “férias” de verão, a contar as histórias das suas vidas, que davam vários romances, já que a morte era certa.
Cada qual à sua maneira capava as horas sonolentas das tardes esquecidas: uns viviam das suas recordações – “ai, no meu tempo…” – outros liam o jornal com os óculos graduados a servirem de lupa, à cata da notícia tão esperada, mas que teimava em não aparecer à luz do dia: o aumento das suas miseráveis pensões sociais. O João Marinho com o cigarro – o seu amigo certo das horas incertas – ao canto dos beiços gretados, entretinha-se a deitar milho às pombas vadias, isto é, sem eira nem beira.
Com o cigarro ao canto dos beiços gretados, entretinha-se a deitar milho às pombas vadias
Num dia de estranha moleza, cheguei à fala com o João Marinho. Prisioneiro do seu pequeno mundo, no estádio da terceira idade, ele, que foi o mais conhecido mestre-alfaiate da vila, que fazia em exclusivo os fatos da moda aos “senhores doutores”, há muito tempo que via arrecadada a sua velha máquina de costura, da marca “Singer”, e tinha posto de parte a tesoura, a almofada das agulhas, o pau de giz, a régua de madeira, o ferro de engomar e a fita de pano, que foram as suas ferramentas de trabalho ao longo dos anos desde que o botaram fora da escola primária. Estudar não era com ele. Gastava o tempo a mandriar e a jogar à bola de farrapos, no terreiro da vila.
Mas, sentindo-se ainda com “sangue na guelra” (velhos eram os trapos e parar seria morrer sem hora nem glória), o João Marinho, a fim de ganhar para a bucha” – e para o golinho de vinho que o mantinha em pé, como ele dizia –, entretinha-se em casa a fazer uns biscatezinhos… E comentava com o seu humor corrosivo: - “Ah, se a vista não me enganasse e os dedos me ajudassem, ainda ganhava um dinheirão a virar casacas. E podia até amealhar uns cobres, para dar o grande passeio da minha vida: como eu gostava de conhecer Lisboa! Mas, por este andar e como vejo as coisas pretas, o meu sonho vai comigo no caixão, para a cova do cemitério municipal”.
O João Marinho cumpriu, cabalmente, as suas obrigações fiscais, nada devendo à fazenda nacional
Só que o mestre-alfaiate João Marinho não teve sorte na vida; mas também nunca pensou no futuro! Vendo-se sozinho no mundo, não tendo mulher nem filhos para lhes prestar contas, sempre fez como o brasileiro: “Gozar hoje a vida, senão amanhã pode ser tarde de mais”.
Contudo, o João Marinho cumpriu, cabalmente, as suas obrigações fiscais, nada devendo à fazenda nacional. Ele lembrava-se que, no dia nove de Setembro de 1969, pagou à boca do cofre da tesouraria municipal, o seu “imposto de prestação de trabalho”, no valor de 31$00. Nas costas do primeiro aviso, lia-se esta advertência: - “Depois desta data pode efectuar o pagamento durante mais sessenta dias, período das operações preliminares do relaxe, acrescido dos juros de mora, findo os quais se procede ao relaxe”.
Mas, naquela tarde outonal adormecida no colo dos deuses, quando cheguei ao pé do banco do jardim sem flores, como o céu sem estrelas, sofri um choque emocional: Não vi o João Marinho, nem as pombas vadias. Perguntei por ele a um “almeida” camarário, que apanhava as folhas mortas tombadas das árvores pelo vento de suão. Com a vassoura em suspenso e tirando o boné com pala, respondeu-me com o olhar marejado: - “Esse, coitado, já não faz parte dos vivos. Foi a enterrar a semana passada com grande acompanhamento, porque era um bom homem”.
Pobre mestre-alfaiate, que morreu à margem do estado-providência
Nada pude fazer. Apenas curvei-me como sinal de respeito por uma vida que se extinguiu, à sua memória. O João Marinho era credor do erário público, dos anos que pagou o seu “imposto da prestação de trabalho”, enquanto os funcionários públicos e os militares dele estavam isentos.
Pobre mestre-alfaiate, que morreu à margem do estado-providência.
Arcos de Valdevez
1 comentário:
Felicito a existência deste blog, que desconhecia, e associo-me àqueles que dedicaram a sua vida à arte de bem vestir os outros- os alfaiates- tornando cada pessoa única, não pelo traje que usava, mas pela dedicação e carinho com que essa peça era feita.
Como Antoine de Saint-Exupéry diz no seu Principezinho:
"Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez a tua rosa tão importante".
Parabéns
M.F.C.
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