Só após o primeiro ano de trabalho começou então a ganhar o primeiro ordenado: 15 tostões por dia. E se, nessa altura, a sua clientela era “certa”, normalmente pessoas do bairro e despachantes da Alfandega, hoje em dia, para além de cada vez ser mais escassa, são clientes de passagem, ocasionais. Se uns acham demasiado caro um fato feito num alfaiate, outros apercebem-se que a grande diferença entre estes e os de pronto-a-vestir: na qualidade dos materiais, da forma como são cozidos, pregados os botões ou quando têm que recorrer ao alfaiate para “emendar” os fatos comprados nas lojas. Um fato feito por medida podia custar entre 65 e 80 mil escudos, mas pode durar uma vida...
Uma história engraçada, vivida por Carlos Santos, foi quando um pai e quatro filhos lhe encomendaram uns fatos para irem a um casamento. A mesma fazenda deu para fazer os cinco fatos. “ O pai era tão gordo, que quando veio fazer as primeiras provas do seu fato, levantou de tal maneira os braços - é que a sala de provas era muito apertada! - que se a fazenda não fosse de qualidade tinha-se rasgado toda. Com os fatos, como quiseram todos iguais, pareciam os rapazes da banda do casamento!”, conta, divertido.Os instrumentos que utiliza são muitos e vão desde o dedal, a agulha, vários tipos de tesouras, giz para marcar a fazenda, fita métrica, secador, ferro a vapor, almofada inglesa (que serve especificamente para passar os ombros dos casacos), uma chonga (tábua própria para dar forma aos casacos) pregadeiras, botões, um jogo de réguas: uma para a traseira e a frente das calças, outra curva para os ombros e um esquadro curvo para a linha das calças.Era importante, e ainda o é, acompanhar as modas e os diferentes estilos, tais como as bocas – de - sino (ou pata de elefante) estilo argentino, embora seja o smoking clássico que mais lhe costumam encomendar, pois é um estilo que fica sempre bem.Quanto ao futuro, e embora já tenha tido seis mulheres a trabalhar para ele, antes do 25 de Abril, a tendência é para que a tradição do alfaiate venha a acabar. Como ele próprio diz: “actualmente o que conta é o dinheiro; já não tenho ninguém aqui a aprender porque as pessoas já chegam aqui a quererem saber quanto é que vão ganhar em vez de quererem primeiro aprender a fazer bem um fato. Assim, o tempo que perco a lhes ensinar e o salário que lhes tenho que pagar, é melhor ser eu aqui só com a minha ajudante.”Só na Baixa, os alfaiates eram às dezenas, e resiste uma casa de referência, a Nunes Correia, na esquina da Rua de Stª Justa com a Rua Augusta, fundada no final do secº XIX, e que teve a primeira máquina de costura Singer, que foi ali estabelecer-se ido da Rua dos Algibebes – o oficio que antecedeu o alfaiate - hoje Rua de S. Julião.Sobrevive, hoje, o herói, o resistente, que nos seus 70 e muitos anos, ainda não pôs o dístico para trespasse à porta, o nº160 da rua dos Remédios, sempre esperando por mais uma encomenda, um fato que alguém prefira feito do que o massificado pronto-a-vestir. Cumprimenta quase toda a gente que lhe passa à porta e toda a gente o cumprimenta. Não é para menos: a sua jovialidade fica bem na figura elegante, de colete bem talhado, beirão de olho claro e olhar penetrante, que acarinha a sua terra e recorda as romarias, o ribeiro e os moinhos de água, e onde vai amiúde.Mas se estima o local onde trabalha, Alfama, também estima o seu “clube de colegas”, a Associação dos Alfaiates e a respectiva casa de repouso em Sintra. O dia do alfaiate é o ultimo domingo de Maio e o seu patrono é Homem Santo Bom. Ora entra o vizinho que vem assobiar para o canário do Sr. Carlos, ora a senhora que vem dar um recado para uma outra vizinha, e o sr. alfaiate é mais do que isso, é uma referência, uma simpatia para todos, é alguém dali. E chega aos jornais e revistas nacionais, a livros.O cosmopolitismo de Carlos Santos chega à Alemanha, Grã-Bretanha, donde vêm fotografá-lo, filmá-lo, entrevistá-lo. Mas pode-se lá ter melhor pré-reforma do que falar da sua vida e ficar memorizado nos quatro cantos da Europa? O Sr. Carlos dá-me uma da sua sabedoria, que não vou esquecê-lo, bem-haja por isso: “Eu continuo a fazer o que fazia quando tinha 20 anos: então fazia o que podia, agora faço o que posso!” E esta, hem?!
Guilherme Pereira [texto e fotos]
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