Há quarenta anos, a Vera Lagoa escrevia que os homens mais elegantes e bem vestidos estavam, onde havia verdadeiros mestres alfaiates prestigiadíssimos - quem quisesse ser alguém tinha de mandar fazer num deles, pelo menos, dois fatos por estação. Os Mestres dedicavam-se a cortar, a fazer as duas provas da praxe ao freguês e iam todos os anos a Londres «contrabandear» as peças dos melhores cheviotes, príncipes de gales e flanelas.
Nas senhoras era difícil rodar toillettes porque não havia vernissages, não lhes passava pela cabeça sequer chegarem perto das buates e, para ir ao Rivoli ou ao Trindade, bastava porem o vison da Rússia no Porto ou da Beigel. Quanto ao Presidente Rui Lacerda, seria impensável patrocinar uma cópia rasteira do baile do Clube na Bolsa.
A grande modista da época era a dona Candidinha, onde as mães de posses fizeram ou mandaram fazer, um dia, um vestido, um enxoval ou o saial do baptizado da criancinha.
No Porto, sempre houve uma fortíssima tradição de competentes calceiras, camiseiras, cerzideiras e costureiras, todas fornecedoras de confiança das modistas e alfaiates, trabalhando no duro muitas horas por dia, que, infelizmente, também desapareceram com os patrões.
Hoje, o negócio da moda em Portugal (as modistas, assumidamente envergonhadas, transformaram-se em «estilistas») é um conglomerado esquisito de actividades que aparentemente vivem de tudo menos de vender vestidos - fashion advisers, agências de modelos e de comunicação, cabeleireiros, maquilhadoras, personal trainers, cenógrafos, fotógrafos, revistas do coração, eu sei já quanta gente!
E digo isto porque, através de uma rápida pesquisa pessoal, inventariei 25 - vinte e cinco! - «estilistas» portugueses referenciados quase em permanência na comunicação social especializada e porque, também segundo dados conhecidos, não devem chegar a facturar, no seu conjunto, milhão e meio de euros, o que dá uma média per capita de sessenta mil euros por ano, ou, em valores do tempo da Candidinha, doze mil contos!
De que vive toda esta gente? Como pagam aos seus mais díspares fornecedores e assalariados? Que raio de empresas serão estas, que, em princípio, não conseguem facturar sequer para pagar a luz eléctrica que gastam?
Elas são, afinal, o sofisticado exemplo daquilo em que se transformou parte do nosso tecido produtivo terciário - a cheirar muito a glamour, preocupado com a imagem e a comunicação, tudo fazer para ser famoso como forma de fugir ao anonimato da vulgaridade, mas, na essência, um desesperado flop empresarial e de investimento.
A maior parte destas «empresas» entra, ano após ano e sem qualquer acrescento real de valor, no circo sazonal dos festivais da moda nacional, pagos por organismos públicos de promoção internacional e outros privados, que se lhes referem sempre como de enorme sucesso, embora, infelizmente, sem incremento das vendas ou da penetração nos mercados.
Este verdadeiro processo de faz-de-conta seria inócuo e indolor se não estivéssemos a falar de empresas, investimentos, financiamentos, trabalhadores, fornecedores e mercados - stakeholders, conceitos e valores que deviam merecer o máximo respeito - que, em princípio, deveriam tirar algum retorno visível dessas iniciativas, para além do tal glamour e a publicidade paga nas revistas do costume.
É, portanto, aqui que se situa o essencial da questão: os diferentes promotores e financiadores, os tais que puxam os cordões à bolsa para alimentar toda esta gente, têm, de facto, algum retorno efectivo ao investimento efectuado? Se não, qual a razão - a verdadeira razão, a de fundo! - para insistirem em projectos que consomem milhões em fundo perdido?
Era esta a mensagem que o Estado, as Universidades, as Organizações representativas Empresariais, os Bancos e as grandes Corporações deveriam ser todos obrigados a passar como estratégia de compromisso nacional - precisamos de milhares de PME de excelência, mesmo em sectores tradicionais e maduros, com projectos consistentes e lideres indiscutíveis e aceites a geri-las.
Precisamos de tirar o máximo proveito das nossas inigualáveis e irrepetíveis qualidades como povo e maximizar as condições conjunturais que nos sejam oferecidas, a todos os níveis, no pressuposto que o nosso «destino» nunca será sermos descobertos por um qualquer agente de talentos, porque não somos, de facto e na generalidade, nem génios, nem ricos nem sortudos - precisamos todos de trabalhar imenso para vingar na vida.
É perigosíssimo e desastroso fazer passar permanentemente para os nossos jovens candidatos a empreendedores a mensagem que a imagem de uma cara bonita (também há empresas que criaram uma cara laroca), com padrinhos conhecidos e endinheirados e uma agenda de bons contactos «no meio» (seja isso lá o que for ...) chega para criar um projecto sustentável - no fundo, ao fazê-lo, só estamos a manter o tal mundo de faz-de-conta, feito de aparências e ilusões.
Autor: M. J. Carvalho
2007-02-16 Fonte: Vida Económica, 16.Fev.07 | |
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