domingo, 25 de novembro de 2007
Há cada vez menos mestres alfaiates
Sempre que o filho aparecia com más notas, João Ribeiro fazia um ar despreocupado: "Se não queres estudar não faz mal, vais lá para o atelier e aprendes a profissão." Assustado, ele agarrava-se aos livros. "Como se isto fosse a pior coisa do mundo", conta o pai, com um misto de tristeza e orgulho no filho economista.
João Ribeiro tem 58 anos e é alfaiate desde os 11. Domingo Rocha, hoje com 51 anos, iniciou-se com apenas 10. Fernando Metelo, de 65 anos, já leva 54 de profissão. Eugénio Gomes, de 62 anos, tinha apenas 12 quando o sentaram num banquinho a treinar a coser com um pano, uma agulha e um dedal. "Mas sem linha, para não dar prejuízo à casa". "Naquele tempo", dizem, era comum os miúdos só estudarem até à quarta classe. Porque não havia escolas por perto, porque a vida era cara, porque era preciso contribuir para o orçamento familiar. "Ou se ia para uma fábrica ou se aprendia uma profissão." Uma arte, como a de alfaiate, a de sapateiro, a de carpinteiro. Os dedos pequenos dos adolescentes picavam-se nos alfinetes e atrapalhavam-se com os moldes. Na tesoura, a enorme e pesada tesoura do mestre, nem tinham autorização para mexer.
De aprendiz a oficial e a contramestre, a carreira fazia-se de passos pequenos. Pendurado no seu atelier, com vista para os eléctricos da Graça, Fernando Metelo tem o diploma do curso tirado na Academia de Corte Maguidal, fundada em 1934 (e ainda a funcionar). Noutra parede, o horário da loja desde que se estabeleceu por conta própria, em 1971. Nas gavetas acumula recortes, fotografias, exemplares da Vestir, "publicação trimestral de técnica e moda para alfaiates". Em 1964 estima-se que existiam no País mais de seis mil alfaiates. "Os homens vestiam-se todos no alfaite e as senhoras na modista", conta Fernando.
A situação mudou após o 25 de Abril. A implementação do salário mínimo obrigou muitas oficinas a dispensar pessoal e a reduzir o seu trabalho. Depois, o pronto-a-vestir tornou-se cada vez mais comum e mais barato. Incapazes de competir com a rapidez e os preços das lojas, os serviços dos alfaiates tornaram-se um luxo reservado a alguns. A escolaridade obrigatória e as malhas cada vez mais apertadas da fiscalização do trabalho infantil fizeram o resto. Hoje, a profissão está oficialmente em extinção. Os jovens querem estudar ou optam por trabalhar nos serviços, em algo que lhes pareça mais atractivo e com mais possibilidades de progressão. "Se gostam da área, vão para estilistas."
Rosado e Pires, Jivago, Américo e Lima, António Simões, David, Old England... João Ribeiro enumera de cor as casas de alfaiate que nos últimos anos fecharam as portas na Baixa de Lisboa. Para sobreviverem, alguns tiveram de se reciclar ou deixar de parte o orgulho. Fernando Metelo mantém ainda o seu atelier, mas deixou de receber clientes pois trabalha para uma loja - "Era a única maneira." As suas mãos não param e nos cantos acumulam-se sacos de fatos por terminar. "Nunca imaginei que um dia iria ter de alinhavar e coser", lamenta-se, referindo-se à tradicional distinção entre os alfaiates (que moldam, cortam e provam) e as costureiras (que, como o nome indica, cosem).
Para Domingo Rocha, o pronto-a-vestir não é uma ameaça. Afinal, ele é o mestre alfaiate do Corte Inglés, em Lisboa. A seu lado, estendem-se cabides e cabides com as melhores marcas de roupa para homem. Mas Domingo sabe que quem se aproxima do seu cantinho forrado a madeira procura algo diferente: atendimento personalizado, as medidas certas anotadas numa ficha com o seu nome, um modelo único, um fato que seja como uma segunda pele. Os alfaiates orgulham-se das suas obras: costuras perfeitas, casas de botões à medida, riscas que nunca estão desacertadas, bolsos que nunca são falsos, avessos sem mácula. Perfeição. "Cada corpo é um mundo", diz este mestre de gestos delicados e postura impecável. "Não tenho só de fazer com que as pessoas se sintam mais confortáveis. O mais difícil é fazer com que as pessoas gostem de se ver."
MARIA JOÃO CAETANO
VASCO NEVES (imagem)
In Diário de Notícias
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