quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O alfaiate dos toureiros


Manuel Marques faz casacas para cavaleiros tauromáquicos há quase meio século. Ele é um exemplo vivo de uma tradição que teima em manter-se


Com uma infinidade de reflexos ao sabor da luz, as casacas de cetim bordadas a fios de ouro e prata evocam os cavalos correndo de melenas ao vento pela lezíria. Biscainho não é o centro do mundo, sequer do Ribatejo, mas esta aldeia per­to de Coruche acolhe, numa das suas ruas, um pequeno atelier que abriga um tesouro de sapiên­cia. Uma alfaiataria que há 40 anos é conhecida até nos continentes mais longínquos. Ali se ves­tem os cavaleiros da corrida à portuguesa. Além do ritual de vestir, entre provas, supersti­ções e preparação, há o momento em que o ca­valeiro exige elegância e agilidade para facilitar o espectáculo que se quer perfeito. Esta arte de vestir toureiros teme, no entanto, o fim, pois os 75 anos já pesam a Manuel Marques, que ainda garante continuar a costura "até o corpo deixar". Depois dele não se sabe. Não tem aprendiz nem quem queira aprender.
Neste quase meio século, pela sua casa passaram quase todos os cavaleiros portugueses. Só um não entrou lá: Paulo Caetano, "porque ele tinha um cunhado que era estilista e lhe fazia as casacas". Manuel Marques tem grande admiração pelos cavaleiros, fez bons amigos nos muitos anos de relacionamento profissional, conhece as suas vidas e sofrimentos, sabe que muitas delas se escreveram com sangue, suor e lágrimas. Diz que, "ao contrário do que muita gente ima­gina", o meio dos cavaleiros é pobre. "Gastam aquilo que não deviam, os cavalos, o vestuário, é tudo caro", portanto, é preciso fazer magia, à semelhança da história do touro azul: "É comer e beber e trazer o lanche todo para casa." Apesar disso, a vida dos homens que se dedicam à cria­ção de gado não é um rol de choros e lamenta­ções porque a simplicidade e a esperança são partes marcantes do seu carácter.
Se um dia as touradas acabarem? "Pode acon­tecer. Não pelo gosto mas pelo fim das ganada­rias. Aquele animal de arena existe em condi­ções únicas. Não se pode sequer classificá-lo como carne. É bravio." As castas foram-se aper­feiçoando até se alcançar o touro de lide. "Aca­bando as ganadarias, acabam-se as touradas. Sem um animal com um instinto de vida ou de morte não há corrida." Foi para a festa brava que Manuel Marques trabalhou 40 anos entre cetins, tesouras e bor­dados. Homem simples e bastante comunicativo, o alfaiate já foi várias vezes alvo de prémios e condecorações. Na parede do atelier tem emol­durado o Prémio Nacional de Artesanato Tradi­cional, referente a uma menção honrosa por um casaco de cavaleiro tauromáquico. "Foi em Julho de 1993. Daquela vez não ganhei o primeiro prémio por não ter lá o traje com­pleto", explica.
Nasceu no Biscainho, em 1933. Filho de agri­cultores, quando chegou a uma idade em que a grande maioria dos meninos começava uma vida dura no campo, Manuel Marques, com 12 anos, sentiu a vocação de acordeonista. Chegou aos 17 não profissionalizado mas a fa­zer profissão da música. Quis o destino cruzar «o seu caminho um mestre do acordeão que também era alfaiate. "Pelas dificuldades, talvez a luta ou por ser uma profissão muito picuinhas, achei muita graça", afirma com um certo brilho nos olhos. E nesse tempo, sem frequentar colégio nem universi­dade, viu na costura "uma maneira de sobres­sair e subir um bocadinho na vida". Foi aprender para alfaiate com as dificuldades inerentes à profissão "porque não havia quem quisesse ensinar. Hoje é diferente: quer-se en­sinar e não querem aprender". O professor era muito pouco sabido, mas foi dessa forma que Manuel percebeu a fadiga de uma profissão aparente­mente fácil, vista por quem está de fora. Isso não o esmo­receu. Partiu para Lisboa rumo à Academia Maguidal, só para alfaiates, na rua da Palma. "Eram 250 alfaiates... isto nos anos 40", recorda. Estabeleceu-se na terra natal mas não calou o acordeão. O trabalho como alfaiate começou por desenvolver-se no trivial - nos trajes tradi­cionais usados no Ribatejo - sempre com ten­dências e com vontade de aprender. Quando viu que tinha muitos lavores, fez uma escolha para que os ensaios musicais não o roubassem ao corte e costura.
Sem esperar, o alfaiate que na época vestia os toureiros, Alberto Armindo - há 50 anos na Rua Augusta, em Lisboa -, atingiu uma idade muito avançada e abandonou a arte. Vivendo perto da Herdade da Torrinha, "os Ribeiro Telles começa­ram a influenciar-me para aprender e aproveitei a deixa", conta. A curiosidade nasceu e Manuel Marques deixou a vontade falar mais alto. Voltou à Academia para procurar a ciência do corte da casaca. Com a característica garra das gentes ribatejanas, entregou-se de corpo e alma à função e pouco tempo depois a sua determi­nação dava frutos. "Arranjei as bordadeiras em Coruche e iniciei a primeira casaca para o João Telles", vermelha, estreada numa corrida em Algés. "Os nervos eram mais que muitos e a experiência nula, desconhecia os produtos e cal­hei desastradamente a fazer uma mancha na casaca, pensei que era o fim da minha vida." A solução que encontrou naquela ocasião passou por "molhá-la e ficou toda igual... mas nessa noite não dormi, era uma pressão desgraçada". O desaire não manchou a sorte e a casaca "foi um sucesso", numa vida que os juntou e uma amizade que os uniu. Ficou "com tudo na mão"; como alfaiate dos cavaleiros da corrida à portuguesa. Essa primeira casaca custou 25 contos. Hoje um trabalho daqueles custa mais de 1500 euros, e se for bordada a canotiIho - bordado feito em fino arame dourado - pode chegar aos três mil euros.

Antes dos 30, Manuel Marques conhece o amor, nos olhos de Margarida. Costureira no atelier, o alfaiate fala para a mulher sempre em tom de chalaça. "Hoje só faz o que ela quer", graceja. Sem deixar de referir toda a ajuda e dedica­ção que Margarida lhe tem dado ao longo da sua vida profissional. "Prepara o meu trabalho e tam­bém tenho um alfaiate que me ajuda quando estou atrapalhado nos arreios de cortesia." Cos­turam tudo o que se relaciona com o cavaleiro. Sempre bem-disposto, explica que faz "a casaca, a camisa, o colete, o calção, o tricórnio e os arreios de cortesia. Só não faço as botas e o cava­lo", apesar de também o vestir. A montaria traja os arreios de cortesia: a cobertura, as abas, a rabadilha, a capa de cela e o charel. "É uma obra que demora cem horas, que tem trabalho de correei­ro e leva tanto tecido como uma casaca e mais bordado." Ainda assim, os apetrechos do cavalo custam sempre menos 5OO euros que a casaca. Habitualmente, os cavaleiros ao encomendarem uma casaca pedem também os arreios para que o traje combine na perfeição.
A primeira das tarefas do alfaiate é afiar o giz. Com regra, traça os cetins especiais, normalmen­te estrangeiros e muito caros. Após tirar as medi­das, corta o modelo escolhido pelo cliente, alin­hava a casaca no manequim, manda bordar e entretelar; já montadas as peças, são depois ana­lisadas juntamente com o tricórnio e os arreios, revistas as casas de botão adornadas em soutax prata (um cordão espalmado), faz uma última prova e um mês depois a obra está pronta. Os bordados são à mão ou à máquina, em linhas de várias cores, a ouro ou prata. A memó­ria dos desenhos para bordados está arquivada em cartões antigos, guardados numa estante, tesouros mudos, até serem chamados a desem­penhar uma tarefa. A empreitada hoje já não esta a cargo das mulheres. A comandar as "bordadeiras" na realização de um motivo estão as máquinas e os computado­res. Cada desenho, ou mo­delo, pode ser realizado em três ou quatro jogos de cores diferentes, de forma mais perfeita e mais barata. Nu­ma mistura bizarra entre o arcaico e a alta tecnologia, o atelier está em condições de satisfazer qualquer enco­menda especial, quer em termos de colorido quer de motivo, em lante­joulas, missangas ou a canotilho. "Com as bordadeiras era tudo manual. Hoje temos os com­putadores que fazem os trabalhos com um software que permite novidades", explica Manuel. No tempo em que a mão-de-obra era barata, eram bordados até em Espanha pelas freiras, mas tudo isso acabou. "Agora para bordar a canotilho são pessoas com muita idade e nem paga o trabalho", garante.

A costura já não é tão exigente como antiga­mente, as novas tecnologias facilitam o tempo e as mãos, que manejam menos horas a agulha em riste. Mesmo assim, a vida de alfaiate não é para qualquer um, é preciso ter vocação, por isso, Manuel está certo que "daqui a 20 anos não há um alfaiate em Portugal". Acredita, contudo, que os processos modernos não deixam nada ficar para trás, diz que outras técnicas virão e por certo será encontrada uma alternativa... Talvez a carência seja motivo de atracção para os cos­tureiros no futuro. No entanto, parece que tal não tem vindo a acontecer.
Nem sempre as casacas de uma corrida à por­tuguesa tiveram a actual configuração. Na pri­meira geração, os cavaleiros toureavam com uma casaca solta, um traje Luís XV, que desde então sofreu modificações. Actualmente tem dois machos atrás, é uma obra de silhueta com borda­dos imaginados pelo ante­cessor de Alberto Armindo, o alfaiate Rosado e Pires. Am­bos antecessores de Manuel Marques, conceberam dese­nhos que se enquadravam na personalidade portuguesa mais tradicional. Pelo contrá­rio, "os bordados espanhóis não possuem uma sequência tão completa". O colete - que também é bordado - possui o mesmo desenho da casaca ou variado. A mo­dernidade trouxe mais liberdade à expressão artística e já nada é tão formal. Contudo, a tradi­ção das rendas nos punhos da camisa e no bolso direito do colete permanece. Atrás, a casaca tem um laço preto que vem do tempo do marquês de Marialva, que impôs algumas regras no século XVIII, proibindo a morte das reses na arena. Dizia-se que o laço negro na casaca do cavaleiro era em sinal de luto pela atitude do marquês, mas Manuel Marques garante que não. "Acabou o laço que prendia o cabelo do cavaleiro e veio com Rosado e Pires para a casaca. O cabelo já não se usava empolado mas sim com o tricórnio." Pa­ra o enfeitar aplica-se os brasilhões em canotilho, doutrina do senhor Azevedo, que tinha uma chapelaria na Baixa de Lisboa, e as penas de aves­truz transformadas em belas plumas brancas. E é ao ritmo sabiamente cadenciado da tesoura no cetim que o alfaiate, sentado em frente ao teflon mágico, que não mancha os tecidos, vigia a sua obra, à caça do mínimo defeito, até atingir a perfeição desejada. Tal grau de exigência limi­ta a produção a não mais de uma a duas casacas por mês. Mas a busca da perfeição começa bem antes, quando o cavaleiro escolhe a cor do teci­do, porventura uma cor que lhe tenha dado sorte noutras corridas. Na verdade, as casacas têm cores tradicionais, as mais acentuadas: o verde, o azul, o vermelho e o bordeaux. Só que a modernidade chegou também à paleta das cores e a variedade já inclui tons pastel. Na arte de bem vestir na arena está ainda a camisa. Essa peça tem um plastron - tipo de gravata com umas presilhas - inspirado nas usadas pelas famílias burguesas. Por ser pouco confortável, os alfaiates modificaram a camisa optando por um colarinho forrado a piqué com a dita gravata com o mesmo ponto, mais fun­cional. Basta-lhe pregar um alfinete dourado e está pronta para a lide.
Manuel Marques usa um segredo nas suas casa­cas que não revela - diz apenas que aprendeu com um amigo em Saragoça. "É alfaiate do ape­ado que conhece o segredo das chaquetillas e das luces. Aplico-o nas casacas e nas jaquetas." Mais não faz, os toureiros a pé portugueses são por isso obrigados a ir comprar os fatos a Espanha. Por cá, cavaleiros como António Ribeiro Telles, Rui Salvador, Ana Batista, Sônia Matias ou Luís Rouxinol preferiram, e ainda preferem, a expe­riência e elegância que Manuel Marques passa para as suas obras.
"No campo da alfaiataria, o trivial está morto." Entre uma parafernália de cores e tecidos, fora da época das touradas, Manuel aplica-se nas jaquetas e nos fatos à portuguesa usados nos festivais e na feira da Golegã. Às vezes aparecem trabalhos diferentes. "Há tempos costurei as capas para a Confraria do Torricado de Samora Correia." Um hábito que pegou. •

PAULA MOURATO
GONÇALO BORGES DIAS


In "Notícias de Sábado"


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