domingo, 4 de janeiro de 2009

A Casa do Fato



Um dos
últimos alfaiates lisboe­tas de grandes tradições. É aqui que o noivo pro­cura o fato para usar naquele dia e os clientes fiéis encontram a mesma elegância de sempre, feita à medida de cada um. Uma reserva de bom-gosto, na Nunes Corrêa.


1
. Os reis e o artesanato
Esta casa no início até fazia as fardas para os reis irem casar. Mas, hoje em dia, estas casas tão específicas de alfaiataria estão em via de extinção, está tudo virado para o pronto-a--vestir e nós fazemos quase «artesanato».

2. Ir à Baixa fazer o fato
Abriu ao fundo da Rua Augusta em 1856 com Jacinto Nunes Corrêa, depois passou para es­te número 250 e, em 1958, o meu patrão ficou com a casa: era o Sr. Leão, o meu patrão desde 1959, uma pessoa fora de série. Ele criou aqui uma famí­lia entre nós, conhecia muito bem as pessoas e as situações. Dizia-nos: «Nós temos sempre de dar razão ao cliente mas o cliente pode não ter sempre ra­zão, é uma pessoa como nós, é nossa obrigação compreendê-lo e saber dar-lhe a volta!". De­pois trabalhei com o filho e agora com o neto! E a família tem sido muito unida no senti­do de conservar esta casa, ape­sar de as coisas estarem difíceis para este negócio de tradição.

3.Provadores e elevadores

A elegância comprova-se nos provadores do primeiro andar, simplicidade na decoração. E ainda assim a D. Isaura suspi­ra pelos tectos "lindíssimos, com pinturas feitas à mão», agora tapados pela sóbria ma­deira. Mas para visitar o atelier onde o alfaiate guarda a sua ar­te, o melhor é usar o elevador ao lado dos provadores para su­bir três andares. É um antigo elevador também bonito e em madeira, onde, certamente há muitas décadas, os clientes que sobem para as medidas e ava-­
liação do alfaiate ficam ainda mais seguros da qualidade da casa com o diploma exposto:
«Estados Unidos do Brasil - Ex­posição Nacional de 1908 - Rio de Janeiro - O júri superior con­feriu o Grande Prémio a Nunes Corrêa & Cia, Lisboa»...

4/5. o fato de casamento
É isso que o jovem procura aqui, uma coisa especial para esse dia. Hoje há uma oferta muito grande, com os centros comerciais e tudo, quem vem para a Baixa às compras são aquelas pessoas que gostam mesmo de cá vir. É unia clien­tela tradicional, vinha o avô, veio o filho e agora vem o neto, mas o neto às vezes acha tudo muito clássico e prefere o pronto-a-vestir. Também temos, claro. E temos também aqui os sapatos da Leão & Leão, sapa­tos clássicos e de qualidade, o mais vendido aqui na casa.

6. Vestir o noivo

Podemos vestir o noivo de cima a baixo: da camisa à casaca, da gravata (ou plastron, largo e preso com alfinete) ao cinto, do colete aos sapatos - o sapato tem de ser preto, sempre, pois o fato só pode ser cinza, antra­cite ou azul-escuro, e, claro, a meia também tem de ser preta. Aqui só ainda não temos a roupa interior, mas também vai chegar em breve, garante D. Isaura. O Bernardo, que já cá está há vinte anos, é que sabe melhor, ele é que veste os noi­vos.«Ah, mas o noivo veste-se como quer! O que nós aqui ves­timos ao noivo é o fraque ou o fato tradicional, que a maioria prefere, sempre preferiu. E tam­bém temos o pronto-a-vestir, claro, tivemos de nos adaptar ao mercado, mas não tem nada a ver com o fato feito à medida. E todas as adaptações, os ajus­tes, são sempre feitos pelo al­faiate!»

7. Provar e vestir

«O cliente só tem de dizer como quer, depois faz as provas e só vê o fato quando lho entregamos já pronto». O artista, o contrames­tre, é o Sr. Gomes, que sabe o que fica bem a cada corpo e per­cebe de cortes e medidas - e há meia dúzia de anos actualizou novos moldes pela melhor al­faiataria italiana. Mas os porme­nores - como assentar um fato na perfeição mesmo se o clien­te tem o ombro descaído - não se aprendem nos moldes: só a experiência faz um cliente ele­gante. E o Sr. Gomes tem a dis­crição necessária para dizer e fa­zer o que convém a cada um.

8.Quem vai à Baixa?

Quem nos manda fazer os fa­tos são clientes quase todos já de meia idade. Mas por esta ca­sa passaram todos os homens de negócios, todos os políticos, desde o Mário Soares ao Sá Car­neiro, conheci essa gente toda. E tínhamos aqui um ambiente como uma família, todos os empregados e os patrões. E eu era a mais novinha deles todos quando entrei, faça as contas, já tenho 63 anos... estou aqui há 45! Se Deus quiser para o ano reformo-me. E aqui até conheci o meu marido, aqui ti­ve o meu filho, já nasceu o meu neto... Mesmo sem querer, is­to faz parte de mim. Hoje é di­ferente, já não se trabalha as­sim, mudam os tempos, os clientes...


9. Alfaiate,espécie em extinção
O Sr. Gomes trabalha há 48 anos neste ofício, começou a aprender ainda na província aos 15 anos, «tive de pagar pa­ra aprender e só depois come­cei a ganhar dez tostões por dia». Veio para Lisboa, em 1959, trabalhar para uma das muitas alfaiatarias que exis­tiam na época, quando cada qual gostava do fato feito à sua forma e medida (curiosamen­te esse é também o ano em que a D. Isaura começou a trabalhar nesta casa). Esteve em vários sítios e aprendeu com vários contramestres, grandes mestres da arte da alfaiataria. Há três anos, este «maravilho­so alfaiate, um dos últimos desta arte em extinção», como é descrito nas palavras de D. Isaura, veio para a Nunes Corrêa. Porte distinto e reser­vado, o mestre apenas se queixa de não haver ninguém inte­ressado em aprender a arte. «é moroso, leva muito tempo a aprender, nesta profissão não se ganha dinheiro fácil», mas não se importa de nos ajudar a preparar fatos e manequins para a fotografia.

10.Mãos de fada

A palavra costureira, costureirinha, faz lembrar velhas co­médias a preto e branco com Beatriz Costa. Mas não são tão antigas as costureiras da Nu­nes Corrêa: faz este mês 17 anos que a D. Lurdes trabalha neste quarto andar da Baixa pombalina. Alinhava, costura e dá assistência ao trabalho do alfaiate juntamente com as co­legas, a D. Luísa - que apesar de trabalhar em costura há quarenta anos só no ano pas­sado veio para aqui - e a se­gunda pessoa mais antiga na casa, a D. Céu -«sou a mãe de­las todas, trabalho aqui há 37 anos».

11. As máquinas e as pessoas
Mas são quase desse tempo a preto e branco as máquinas e os ferros com que nesta casa se mantém a tradição. Mas o difí­cil seria substituir estas máqui­nas por novas que trabalhas­sem tão bem... E o que dizer das pessoas!"

In "Notícias Magazine"

Texto: Sandra Oliveira
Fotos: Neni Glock

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