domingo, 25 de novembro de 2007

O alfaiate que veste gente importante


Fernando herdou do pai o talento de alfaiate.
As suas mãos já vestiram desde Marcelo Rebelo de Sousa
à rainha Sofia de Espanha

Com um naco de giz branco seguro firmemente entre os dedos da mão, Fernando Almeida desliza sobre a mesa para desenhar um traço aqui, outro ali, no metro e meio de tecido preto. Num abrir e fechar de olhos, um traje de solicitador começa a ganhar forma. Raras são as vezes que o alfaiate se socorre da precisão da fita métrica.
Completa este ano 82 primaveras, 70 das quais a manusear tecidos, a marcá-los e cortá-los. Aprendeu a técnica com o pai, Manuel Guilherme de Almeida, Mestre Alfaiate, responsável pela abertura, em 1934, da primeira escola de alfaiates em Portugal, ainda hoje de portas abertas, para quem faça gosto em aprender esta arte.
A passagem do tempo vincou-lhe a pele, gastou-lhe a corda às palavras, mas a memória mantém-se fresca como uma alface. Ainda que a passo de caracol, Fernando reparte agora a sua atenção entre traçados e o relato de infindáveis lembranças de seu pai. Dava pelo nome de Manuel Guilherme de Almeida e os primeiros passos em alfaiataria foram precoces: tinha onze anos.
Proveniente de uma família pobre, foi obrigado a procurar trabalho para ajudar a levar o pão à mesa da família. Certo dia, em mais uma busca desenfreada pelos classificados do ‘Diário de Notícias’, os seus olhos cruzaram-se com um anúncio onde eram solicitados os serviços de um aprendiz de alfaiate.
Nunca antes as suas mãos tinham sentido a textura de uma agulha ou de uma linha de costura. Nem se conheciam histórias de alfaiates na família. Mas o talento do rapaz entupia-lhe as veias. Não tardou em dar nas vistas, chegando rapidamente às mais exigentes alfaiatarias da época. Mais tarde, é ele próprio quem se aventura no ensino, passando a centenas de aprendizes a pasta de conhecimentos e experiências adquiridos ao longo dos anos.
O ensino traz-lhe novo fôlego e Manuel Guilherme de Almeida debruça-se mais uma vez sobre os livros para estudar a fundo técnicas de corte, tanto em vestuário de dia-a-dia como de cerimónia, desportiva, regional e militar. A embriaguez de informação levou-o a deparar-se com deficientes traçados de métodos de corte. Para fazer frente à lacuna, puxa pela cabeça, põe mãos à obra e cria um sistema próprio denominado Maguidal.
“Ma” de Manuel, “Gui” de Guilherme, “Dal” de Almeida. Trata-se de um método proporcional que apresenta as fracções relativas a cada medida de peito, destinadas aos traçados do corte, dispensando as antigas réguas de escala, tabelas ou cálculos aritméticos. “Encontramos 1/3, 1/6 ou 1/12 de escala através de duas linhas oblíquas do rectângulo da cava.
Fracções que podem ser verificadas através do ensaio dos vários tamanhos convencionais”, esforça-se Fernando por explicar, com noção de que para quem está de fora, a compreensão do sistema não é pêra doce. “A Geometria Descritiva também me deu muitas dores de cabeça. Comecei com 6, depois tive 9, mas cheguei aos 17”, revela em solidariedade.
Seja lá de que forma se chega ao método, o que é certo é que com a inovadora técnica, o nome de Manuel Guilherme de Almeida foi aplaudido e atravessou fronteiras. Patenteado com o número 27800, encontra-se descrito no livro Método de Corte Maguidal, com edições em 1948 e 1962.
Foi igualmente sob as iniciais do nome do prestigiado alfaiate que ficou baptizada a primeira escola de alfaiates portuguesa, da qual foi fundador: Academia de Corte Maguidal. Nasceu há 72 anos num típico prédio lisboeta, na Rua da Palma, Almirante Reis e, em pouco tempo, tornou-se um requisito obrigatório para quem quisesse vingar no mundo do corte e costura.
“Aos mestres e contramestres das antigas Oficinas Gerais de Fardamento do Exército era-lhes exigido um diploma da escola”, realça Fernando. O seu pai leccionou quase até ao último dos seus dias, em 1992. Dez anos antes, foi instituído em Portugal o Dia do Alfaiate, em sua homenagem.
Deste lado, Manuel deixou três filhos já crescidos. Todos com percursos de vida bem distintos. Arnaldo formou-se pintor, Guilherme é físico, e Fernando, escultor, professor de Belas Artes e o único que sempre se interessou por aquilo que o pai fazia. “Acho que também nasci para isto”, sussurra, sem meias palavras.
Desde os doze anos que Fernando começou a frequentar assiduamente a Academia do pai. Perdia a conta às horas quando o via ensinar a arte de bem cortar e, a pouco e pouco, foi entrando no esquema. Mais tarde, a sua formação como escultor acabou por lhe ser útil no mister de alfaiate. No entanto, foi preciso o pai encontrar-se em idade avançada para Fernando se dedicar a tempo inteiro à Academia. Antes, conciliava a ocupação com as aulas na Escola António Arroio.
Hoje, o extenso trabalho nascido das suas mãos e do seu progenitor, enchem dossiers coloridos, onde a cada página se vêem esboços, desenhos e recortes de jornais e revistas. As capas plastificadas tentam preservar memórias que enchem Fernando de orgulho. Página a página vê-se ora Marcelo Rebelo de Sousa, ora Alberto João Jardim, ambos com vestes assinadas por Manuel Guilherme de Almeida. Mais à frente, o repertório alarga-se à escala internacional.
Foi na Academia de Corte Maguidal que nasceram os modelos dos trajes académicos de todas as universidades públicas e privadas de Lisboa. A fama atraiu, no entanto, encomendas do resto do País e do estrangeiro.
Um dos recortes de jornal tem impressa uma pintura clássica do casamento de D. Manuel I. Entre os convidados, um homem de identidade desconhecida enverga uma boina que serviu de fonte de inspiração para o traje da Universidade de Évora, a mesma com que a rainha Sofia de Espanha vestiu a sua cabeça aquando da vinda a Portugal para ser agraciada com o grau de doutora Honoris Causa.
Fernando não esquece esse momento de glória. Desapontou-o apenas o facto de não ter confraternizado pessoalmente com Sua Majestade. “Não lhe tirei as medidas!”, atira, com ar malandreco. Para a mesma causa, foi responsável pela farpela de Mikhail Gorbatchov na Universidade Moderna, em 1995. Também não esteve frente a frente com o Nobel da Paz, mas desta vez tanto lhe fez.
Aqui também são executadas togas, becas, batinas que vestem juízes, advogados e doutorados. Tudo feito com os melhores tecidos nacionais, ‘terylene’, cetim de algodão e seda. Mas enquanto as fardas saem quase à velocidade de fábrica das mãos de Fernando, o mesmo não se pode dizer do número de alfaiates. São cada vez menos os que procuram formar-se nesta arte.
Os últimos alunos vieram das oficinas da GNR e, mais recentemente, dos armazéns El Corte Inglés, quando inaugurado no seio da capital portuguesa, em 2001. “Deixou de haver aprendizes, não só na alfaiataria como em todas as artes. É o fim das profissões de produção manual”, revela, entristecido.
Mas como o dia da extinção ainda não chegou há que erguer a cabeça e continuar a produzir. Com 82 anos, Fernando cumpre religiosamente o horário das 9 às 18. E vê-se que o faz com prazer.


Janete Frazão
IN Correio da Manhã

4 comentários:

Fernando Cruz disse...

Sou um alfaiate emigrante em Marrocos, sempre adorei esta profissão que aprendi com os melhores mestres da cidade do Porto.
Dentro de pouco tempo estarei de regresso definitivamente.Gostaria de adquirir um livro da escola Maguidal, como o posso conseguir?
Obrigado.
Cruz Fernando

Alfaias disse...

Talvez a melhor forma de o fazer seja através do seguinte contato:

Academia de Corte Maguidal

R. Palma 219, 2º - E Lisboa, LISBOA, LISBOA 1100-391

p: 218861966

Alfaias

Francisco Garcia disse...

Existe um alfaiate no Porto que se chama Fernando Almeida. A atelier dele fica na Rua da fábrica. É este Senhor? Grato, subscrevo-me. Francisco Garcia

Alfaias disse...

Caro Francisco Garcia

São pessoas distintas.
O Sr Fernando Almeida , referido no artigo, é de Lisboa, filho de Manuel Guilherme de Almeida e continuador da Academia de Corte Maguidal.

O Sr. Fernando Almeida, que refere, tem o seu atelier no Porto,na Rua Santa Teresa, 26. É um alfaiate exímio, especializado em becas e togas.

Alfaias